(Imagens da Web)
“Maria”, filha única, é uma moçoila linda que
ainda não soprou as quarenta velas. Os seus olhos eloquentes, para onde quer
que se fixem, expressam luz e espiritualidade. Mora numa terra próxima do mar
há cerca de uma dúzia de anos e, depois de um casamento falhado, desde quando
se prendeu de amores pelo seu actual companheiro. Desta paixão nasceram dois rebentos
que são o âmago da sua existência, a projecção de si mesma, um agora com 12 anos e outro com
metade.
Com o passar dos anos Maria depressa se
apercebeu que o reservatório do seu amor tinha um fundo duvidoso. Ora a trocava por
outra, ora o afecto, tão presente nos primeiros anos, desaparecia como nuvem em
quente verão. Para além disso, trabalhar para custear as despesas da casa era
um esforço impossível para a sua débil vontade. Sendo as relações um universo
entrelaçado que só subsiste pelo apoio contínuo, naturalmente que aquela
ligação passou a ser tudo menos de firmamento. E as primeiras cominações do
homem para a mulher, como ervas daninhas a emergirem de um pântano de águas turvas,
começaram a surgir a todo o momento. Da verbalização à prática foi um pulo e
Maria começou a sentir na pele as pancadas que lhe esmagavam o corpo e
dilaceravam a alma. A ameaça de abandonar aquela vida de martírio começou a germinar
na sua cabeça e a tomar forma na sua boca. A resposta do opressor foi afogar-se
em álcool e recorrer a chantagem, na advertência de lhe retirar os filhos. E
Maria foi aguentando aquela tortura física e mental. Mas toda a atrocidade para
quem a recebe tem um limite. Com o tempo, mesmo bebendo diariamente o veneno
que a torna quebradiça, sem nada fazer por isso, a vítima vai fortalecendo,
deixa de sentir a dor, e vai criando uma revolta que a há-de fazer sair do
círculo que a mantém prisioneira.
Sendo a casa de sua propriedade e fruto do
anterior enlace, há cerca de dois meses mudou para outro quarto e passou a
dormir com o filho mais novo. Foi o desencadear de novas acções violentas. Há
três semanas, pouco depois do Natal, a meio da noite e toldado pelo etílico, o
companheiro irrompeu pelo quarto e, à frente do filho mais novo, violou e pela
força obrigou a mulher a manter relações sexuais. Foi o clique que faltava para
acender um rastilho de uma bomba que se adiava em explodir. E Maria foi
apresentar queixa na PSP. O dominador foi contactado e sinalizado pela polícia e em resposta aumentou a
pressão sobre a companheira, retirando-lhe os cartões de crédito e o telemóvel.
Entretanto submeteu a mulher e os filhos a entrar no automóvel e, sobre ameaça
de morte, obrigou-os a acompanharem-no a uma vidente numa localidade com praia
e ali próximo. Em desespero de causa, a “raptada” conseguiu contactar a mãe e
contar-lhe o perigo e a aflição que juntamente com os seus filhos estavam a correr.
A progenitora contactou a PSP e foi montado um cerco na sua vinda. Para além do
inquérito aberto, foi imediatamente aconselhada a sair com os filhos da casa
familiar –lembra-se que a habitação está em seu nome. Enquanto o tirano se
mantém em casa, foram morar para junto de uma família amiga. Durante duas
semanas esta prole desfeita viveu um calvário sem precedentes, sobretudo pela
liberdade de movimentos do déspota que, para além de tentar resgatar os filhos
na escola, continuou a intervalar com a mulher juras de amor e ameaças de
morte. Pergunta-se, como estará a mãe, avó dos miúdos, a viver toda esta
situação? Como estarão as duas crianças a passar por tudo isto?
Esta semana, sobre o âmbito da APAV,
Associação de Apoio à Vítima, secretamente, abandonou a cidade onde viveu os
últimos anos e partiu para local desconhecido para todos e mesmo para a sua
própria mãe. Interroga-se outra vez: perante esta partida como fica a mulher
que pariu esta mártir? Que sentimento de revolta será tomada esta mãe para com este
sistema que pouco faz para neutralizar o dominador e impõe demasiados
sacrifícios a quem apanha por tabela este padecimento? Que justiça é esta? Que
deixa o opressor em liberdade, na casa que não é sua, e penaliza a vítima a transferir-se
de mochila às costas e a desmanchar tudo desde laços familiares até largar o
seu emprego de funcionária pública?
Só para lembrar e segundo o último relatório
do Observatório de Mulheres Assassinadas da União Mulheres Alternativa e
Resposta (UMAR), na última década morreram 398 mulheres vítimas de violência
doméstica. Dizem os relatórios que é causado pelo ciúme e dificuldade em
aceitar a separação, mas também por falta de intervenção imediata por parte das
autoridades.
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