A noite passada estava fria. Faltava pouco
menos de uma hora para a meia-noite. O velho estava de joelhos no chão da
calçada a rasgar as calças com declarada fúria e uma ladainha imperceptível. Ao
seu lado um saco plástico que embarrigado conteria não se sabe o quê. Era um
homem com cerca de 65 anos, magro, altura média e cabelos brancos atados em
rabo-de-cavalo. Primeiro parei ao seu lado e avaliei a situação. Durante uns
segundos, talvez minutos, tentei apreender o que o motivava aquela raiva. Como
não entendia a sua linguagem arrastada tomei-o como estrangeiro. Avancei então
para o cumprimento e oferta de auxílio: boa
noite! Precisa de ajuda?
Ele continuou a lamuriar até que
levantou os olhos na direcção dos meus. Pensei para mim que estaria embriagado
ou drogado. Continuei a tentar estabelecer um diálogo e percebi que falava
português. Ao mesmo tempo que lhe estendia a mão para o ajudar a soerguer-se e
perguntando o que se passava. Ergueu-se mas tombou imediatamente para trás e
teria caído de costas caso não o agarrasse no limite. Amparei-o e encostei-o a
um carro ali estacionado. Com uma mão a segurá-lo ia falando com ele para tentar perceber o que
se passava e interroguei se precisava que o levasse a qualquer lado, mas o
homem não seguia o meu raciocínio e parecia não ouvir. Entredentes, com a voz
entaramelada e em aparente sofrimento, repetia: “deixe-me, vá-se embora! Sou perigoso! Mato qualquer um com a maior das
facilidades! Não consigo controlar… é uma potência que sinto cá dentro, um
desejo de matar” –ao mesmo tempo com a mão direita encostada à minha barriga,
creio que com dedos amputados, fazia o trejeito de premir um ilusório gatilho –numa
estranha forma de ser, sempre que encontro um personagem estranho sou tocado
pela curiosidade e sou atraído como mosca pelo mel. Salta cá de dentro o meu
lado de "escritor", ou talvez "psicólogo" –que teria sido noutra vida, quem sabe?-
e, perante um quadro assim, procuro perceber o lado obscuro do humano.
Imediatamente intuí que tinha ali à minha frente um exemplar raro.
Provavelmente um psicopata, uma pessoa com um transtorno de personalidade
anti-social, alguém que tinha noção de que não conseguia evitar o mal mas esta
percepção criava-lhe uma terrível angústia bipolar. Por pouco tempo e sem ter
ideia do perigo que corria, imaginei estar perante um Annibal Lecter –o personagem
criado pelo escritor Thomas Harris e passado a filme com o nome de “Silêncio dos Inocentes”, de 1991.
Continuei a ouvir as frases entre-cortadas do
homem. Reparei que tinha o nariz achatado, de boxeur, e no centro, na cana, tinha
uma pequena cicatriz. Numa espécie de diálogo de surdos, ao mesmo tempo, ia
perguntando se já matou alguém ou esteve preso. Na resposta, entrecortada em
gemidos, ouvia: “deixe-me, eu sou
perigoso… eu não controlo esta potência que me vem cá de dentro… esta vontade
de matar!”
Foi então que ele estendeu as mãos
em direcção ao meu pescoço. Talvez porque estivesse à espera, ou não,
desviei-me e fiquei com as suas mãos agarradas à minha roupa. Uma no ombro e
outra na minha camisola junto à gola da camisa. À distância de um braço, sentia
a tensão e a força que o homem exercia sobre o meu corpo. De repente dei por
mim a calcular o que poderia fazer naquela circunstância. Perigo não corria,
sou ágil, pratico uma arte marcial e sinto-me em forma. E mais, no mínimo ainda
me consigo entender com um velho e presumivelmente bêbado. Para minha defesa, agredir
o homem ficou para última decisão –até porque não sou capaz de o fazer sem que
alguém o faça primeiro. A minha primeira determinação foi tentar safar a minha
camisola nova que me tinha custado um dinheirão há pouco tempo. Optei pela
palavra de apelo à calma. Tenha calma,
que não lhe quero fazer mal! Tenha calma!, repetia até à exaustão e durante
minutos que pareceram uma eternidade. Até que consegui livrar-me das suas
garras. Virei costas e deixei lá o presumível monstro a falar sozinho. Como se
não entendesse por que o abandonei, o homem apelava: “ó vizinho, ajude-me! Ó vizinho!”. Com o meu coração a bater
fortemente, continuei a ouvir o apelo do animal em jeito de homem até ao virar
da esquina onde me embrulhei na escuridão.
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