sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

A SOCIEDADE QUIXOTESCA





Joaquim Silva, em nome abreviado, é um cidadão de Coimbra. Conheço-o há poucos anos, creio até que entre nós existe alguma amizade. Um tipo porreiro, diria, não fosse ser iconoclasta. Uma pena, acrescentaria! É um defeito grave. Gravíssimo! Porque, levando em conta a sua nomenclatura Joaquim Silva, devia ser um fulano ordinário, comum, e não é! E às vezes, quando trocamos umas palavras de amizade, até embirro com a mania do “Jaquim”. Porque não há-de o homem ser igual à maioria? Interrogo eu, algumas vezes, com a minha costumeira cara de parvo. E o Silva, com um descaramento desconcertante, ri-se nas minhas bentas! Como se sabe, “iconoclasta” é não ser adepto, ou não seguidor, de um culto, de qualquer coisa, ou idolatria, de pessoas. Por outras palavras, aquele que se opõe a certas convenções, tradições, regras e normas –e não têm de ser necessariamente todas mas apenas algumas e dentro do seu critério de escolha.
Então há dias o “Jaquim” foi convocado para ir a tribunal, como testemunha. Para o mesmíssimo acto judicial, para o mesmo julgamento, recebeu três cartas registadas com o mesmo número de processo e para o mesmo juízo e para a mesma hora e assinadas pelo mesmo oficial de justiça. “Que raio!”, deixou o Silva sair esta imprecação, enquanto apreciava de novo a comunicação. Porquê a mesma missiva em triplicado? “Às tantas tem a ver com o meu sobrenome”, pensou (porque o meu amigo, para além de Joaquim, leva em apêndice Norberto Cardoso Pires). “Se calhar julgam que sou o escritor que já se finou. Ou então o Cardoso Pires da Silva, o vereador da Câmara Municipal de Pombal. Uma coisa é certa, assumidamente, sou três em um”, voltou a remoer a cachimónia. Mas a gota continuava a não dar com a perdigota. E convocou um conselho familiar para apreciar o imbróglio. As três cartas foram colocadas em cima da mesa e aberta a discussão. Foi então que a sua filha mais nova, no meio de uma gargalhada, atirou: “já descobri, pai!”. Uma vem para o Joaquim Norberto Cardoso Pires, cidadão comum. Outra destina-se ao Doutor Joaquim Norberto Cardoso Pires. E a outra, ainda, está endereçada ao Professor Doutor Joaquim Norberto Cardoso Pires!
Parece uma fábula, não parece, leitor? Pois acredite, retirando o romanceado, é mesmo um caso verídico e passou-se por estes dias e neste ano santo de 2015. Sendo pragmáticos, afinal nem será de estranhar. Vivemos numa sociedade que se arroga democrática, que diz perseguir os valores da Revolução Francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, no entanto, cada vez mais sentimos no dia-a-dia que esta Democracia –regime onde o cidadão aparentemente pode intervir nos procedimentos e decisões que lhe digam respeito- é uma utopia, uma falácia continuada. Estamos integrados numa Oligarquia -governo de poucos e concentrado na mesma família-, onde se desenvolvem e promovem os grupos sociais, os interesses de uma elite, os lóbis, a tirania assente pela cúpula dirigente em linha vertical.
No final do ano passado, em 30 de Dezembro de 2014, assisti a uma Assembleia de Freguesia, na União de Freguesias de Coimbra. O recurso ao apêndice “doutor” e “arquitecta” era tão saliente no discurso político, na sala, quanto ridículo e discriminador. De tal modo que uma das deputadas chamou a atenção do presidente da Assembleia para o facto da acta anterior expressar um tratamento discriminatório. Ela também era licenciada e o título acessório não estava lá reflectido. “Ou eram todos regulados por doutores no documento ou não era nenhum”, avocou.


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