Ontem, dia primeiro do Ano Novo que, custe lá
o que custar, vamos ter de gramar até ao
fim, vi até à exaustão, a passar nos vários canais das televisões generalistas,
os muitos milhares de portugueses a comemorarem efusivamente o enterro do velho
e o nascimento do novo. Para além de um declarado aumento de impostos o que vai
mudar na nossa vida neste Novo Ano?
A sensação é que, como barcaça, sem leme, nos estamos
cada vez mais a afastar da costa da nossa identidade. Parecemos nuvens, sombras
esparsas de um passado que não voltará mais. Progressivamente fomos saindo de
um tempo de produção, a que chamaram industrialização, em que dava gosto desenvolver
ideias, e entrámos na era do após qualquer coisa. Agora abominamos os cheiros
de uma qualquer fábrica e, com grande pompa de vencedores, fazemos encerrar os
últimos espécimes. Naquele tempo que nem é tanto como isso, a criação estava
associada à riqueza. Visávamos ser abastados a qualquer custo mas sempre
associado ao labor. Entre o nada ter, na pobreza, e o bem-estar, no
desenvolvimento, apenas se conhecia uma ponte: o trabalho. Entendia-se a labuta
como algo de tangível e baseado no esforço físico, no sujo fato do mecânico
carregado de odor a óleo queimado. Havia uma vontade comum em inventar o que
ainda não fora inventado. O que transparece nos nossos dias é que já não se
cria nada. Não vale a pena. Não é compensatório para o esforço despendido. Surfamos
a água plana sem nos aventurarmos na onda alterosa. Deixámos de arriscar. A
luta deixou de fazer parte da vida e a apatia fez de nós caminhantes erráticos
sem destino. Tentamos apenas sobreviver. Largámos a escarpa, o lugar de actores
interveniente e passámos a assistentes sentados, impávidos de pasmo, que nada
nos faz mover para a acção e a ver o desastre acontecer.
Mesmo sem nos dizerem, temos noção de que
nasce tudo a Oriente. A China e os países emergentes passaram a ser a fábrica
dos milagres. Por lá se faz o impossível a um preço tão baratinho que não faz
sentido movermos um músculo até para coçarmos a omoplata quanto mais mandarmos
reparar o velho secador. Avariou deposita-se no lixo. O contentor passou a ser
o cemitério das nossas memórias. Como fidalgo a enumerar o brasão, orgulhosamente
e com grande estilo somos consumidores. Não produzimos nada mas consumimos
muito. E vendemos o que resta de outros tempos, do que os nossos pais, tirando
da sua boca, nos deixaram com tanto sacrifício. Começamos por nos fazermos
caros, para mostrar um estatuto que não existe, mas depressa vendemos a
qualquer preço porque sabemos que estamos endividados e inseridos num oceano de pobreza. É preciso
fazer dinheiro para pagar a satisfação das necessidades urgentes.
Curiosamente, como em tempos idos, já não é a alimentação mas os acessórios da
modernidade a que chamam bem-estar como a electricidade, a água, o gás e as
comunicações -o telemóvel e o Facebook, que sem estes instrumentos não
existimos. O estômago pode esperar, até para mais andar magro é estar na moda. Somos
todos vendedores de alguma coisa, nem que sejam ideais. As ideias deram lugar à
ideologia.
A perda deixou de ser uma probabilidade evidente
entre o ser e o ter. O ter, enquanto verbo de posse, passou a ser a infra-estrutura,
a razão de existir. O medo na possibilidade de perder tudo passou a constituir
o terramoto natural de uma coexistência conflitual. A probabilidade de começar
do zero apavora-nos. Ou estamos velhos, sem força anímica para combater, ou
somos jovens, sem experiência, que não conhecemos o dissenso enquanto motor do
desenvolvimento. A inveja e a pequena trica tomou-nos e, pelo egoísmo, somos surdos
e cegos guerrilheiros urbanos silenciosos onde o ódio, porquanto verdade distorcida,
assentou arraiais de ressentimento. Nada se perde, tudo se transforma em algo
certo. Por isso matamos na vã suposição de não perder. Estamos transformados em
feras, no entanto, pasme-se, a vida humana vale menos do que o animal irracional.
Os sentimentos de partilha, gratidão, reconhecimento e perdão, apesar de cada
vez mais badalados no Natal, são cada vez mais floreados e vazios de conteúdo
humanista. Deixámos de conviver com o sofrimento. Refugiamo-nos dele no que
calha, seja em ansiolíticos, álcool, drogas, jogos ou outra qualquer forma de
ilusão. Somos passageiros de um trem a que tem por destino a felicidade. Viajamos
em primeira classe. Evitamos não parar na estação da frustração porque somos filhos
da Natureza, ou de Deus, e, por isso mesmo, temos direito a tudo e obrigações
nenhumas. Somos eleitos. Melhores do que qualquer um. Olhamos os mais
desfavorecidos com altivez como se eles tivessem o que merecem. Temos um
secreto prazer em vê-los no chão da sorte. Em contrapartida estamos muito além do que deveríamos possuir.
Somos muito injustiçados pela ventura. Merecemos muito mais.
Enquanto seres de espiritualidade, substituímos
a religiosidade orgânica por uma fé mecânica. Tornamo-nos ecléticos, passámos a
acreditar em várias correntes, e desprovidos de santidade, de humanidade,
deixámos de acreditar num mundo melhor mas somente num universo possível onde,
arrastando-nos, consigamos contemplar as belas estradas, cheias de traços brancos
e resguardos luzidios, pontes e pontões em megalómanas construções
arquitectónicas modernas de sumptuosidade.
A esperança deixou de ser o amanhã
para ser o agora! Já! Imediatamente!
Tornamo-nos cépticos militantes. Ninguém nos convence facilmente. Desconfiamos
dos amigos, dos familiares, dos políticos locais, do Governo, da Europa e do
Mundo. A Globalização assusta-nos e passou a ser o papão-mor de todos os
fantasmas. O medo tomou conta de nós e desistimos de arriscar. Nenhum esforço
vale seja o que for. Sentimos a nossa fragilidade até para nos soerguermos da
cama e abrir a janela para deixar entrar o Sol. Somos versos em estrofe à
deriva num poema sem sentido alavancados em uma sociedade dividida entre a
nobreza e a plebe. O nobre engorda e o plebeu emagrece e desaparece do nosso
olhar.
O amor passou a ter um fim anunciado. É como
uma gripe, só dura enquanto há febre. Perdeu o encanto da sua imortalidade. A
paixão é o começo e o fim em si mesmo e deixou de ser a ligação à perenidade. Os
anciãos, como totens de um modelo relacional a dois que se finou há muito
tempo, são fotografias a preto e branco nos valores.
As coisas simples já não tocam a
nossa atenção. O virtual ocupou o espaço do material. Passamos bem sem cheirar
uma flor encostada às narinas. Apalpar as mamas de uma mulher passou a ser
dispensável em planos de visionamento de longas masturbações solitárias. O
tradicional deixou de ser a base e passou a mofo de sótão velho. Lavrar um
campo, dar os bons dias, ir à missa ao domingo, ajudar o velhinho passaram a ser
descrição para a história de um povo tristonho.
A vontade de fuga passou a ser o nosso
pensamento diário. O estrangeiro passou a ser a Meca para os mais novos e a
aposentação o campo da morte lenta para os de meia-idade e mais velhos. Fugir
disto tudo, nem que seja para um outro qualquer inferno pelo menos onde o
controlo e o domínio do Estado nos faça acreditar na liberdade que já foi um
dia e onde possamos voltar a ser ao mesmo tempo contribuintes e beneficiários.
A poesia morreu na leitura que feneceu
e a escrita é cada vez mais um ano novo numa única vez por ano. O que é que vai
mudar este ano?
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