sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

ESTAMOS EM 2015? É, NÃO É? E DEPOIS?





Ontem, dia primeiro do Ano Novo que, custe lá o que custar, vamos ter de gramar até ao fim, vi até à exaustão, a passar nos vários canais das televisões generalistas, os muitos milhares de portugueses a comemorarem efusivamente o enterro do velho e o nascimento do novo. Para além de um declarado aumento de impostos o que vai mudar na nossa vida neste Novo Ano?
A sensação é que, como barcaça, sem leme, nos estamos cada vez mais a afastar da costa da nossa identidade. Parecemos nuvens, sombras esparsas de um passado que não voltará mais. Progressivamente fomos saindo de um tempo de produção, a que chamaram industrialização, em que dava gosto desenvolver ideias, e entrámos na era do após qualquer coisa. Agora abominamos os cheiros de uma qualquer fábrica e, com grande pompa de vencedores, fazemos encerrar os últimos espécimes. Naquele tempo que nem é tanto como isso, a criação estava associada à riqueza. Visávamos ser abastados a qualquer custo mas sempre associado ao labor. Entre o nada ter, na pobreza, e o bem-estar, no desenvolvimento, apenas se conhecia uma ponte: o trabalho. Entendia-se a labuta como algo de tangível e baseado no esforço físico, no sujo fato do mecânico carregado de odor a óleo queimado. Havia uma vontade comum em inventar o que ainda não fora inventado. O que transparece nos nossos dias é que já não se cria nada. Não vale a pena. Não é compensatório para o esforço despendido. Surfamos a água plana sem nos aventurarmos na onda alterosa. Deixámos de arriscar. A luta deixou de fazer parte da vida e a apatia fez de nós caminhantes erráticos sem destino. Tentamos apenas sobreviver. Largámos a escarpa, o lugar de actores interveniente e passámos a assistentes sentados, impávidos de pasmo, que nada nos faz mover para a acção e a ver o desastre acontecer.
Mesmo sem nos dizerem, temos noção de que nasce tudo a Oriente. A China e os países emergentes passaram a ser a fábrica dos milagres. Por lá se faz o impossível a um preço tão baratinho que não faz sentido movermos um músculo até para coçarmos a omoplata quanto mais mandarmos reparar o velho secador. Avariou deposita-se no lixo. O contentor passou a ser o cemitério das nossas memórias. Como fidalgo a enumerar o brasão, orgulhosamente e com grande estilo somos consumidores. Não produzimos nada mas consumimos muito. E vendemos o que resta de outros tempos, do que os nossos pais, tirando da sua boca, nos deixaram com tanto sacrifício. Começamos por nos fazermos caros, para mostrar um estatuto que não existe, mas depressa vendemos a qualquer preço porque sabemos que estamos endividados e inseridos num oceano de pobreza. É preciso fazer dinheiro para pagar a satisfação das necessidades urgentes. Curiosamente, como em tempos idos, já não é a alimentação mas os acessórios da modernidade a que chamam bem-estar como a electricidade, a água, o gás e as comunicações -o telemóvel e o Facebook, que sem estes instrumentos não existimos. O estômago pode esperar, até para mais andar magro é estar na moda. Somos todos vendedores de alguma coisa, nem que sejam ideais. As ideias deram lugar à ideologia.
A perda deixou de ser uma probabilidade evidente entre o ser e o ter. O ter, enquanto verbo de posse, passou a ser a infra-estrutura, a razão de existir. O medo na possibilidade de perder tudo passou a constituir o terramoto natural de uma coexistência conflitual. A probabilidade de começar do zero apavora-nos. Ou estamos velhos, sem força anímica para combater, ou somos jovens, sem experiência, que não conhecemos o dissenso enquanto motor do desenvolvimento. A inveja e a pequena trica tomou-nos e, pelo egoísmo, somos surdos e cegos guerrilheiros urbanos silenciosos onde o ódio, porquanto verdade distorcida, assentou arraiais de ressentimento. Nada se perde, tudo se transforma em algo certo. Por isso matamos na vã suposição de não perder. Estamos transformados em feras, no entanto, pasme-se, a vida humana vale menos do que o animal irracional. Os sentimentos de partilha, gratidão, reconhecimento e perdão, apesar de cada vez mais badalados no Natal, são cada vez mais floreados e vazios de conteúdo humanista. Deixámos de conviver com o sofrimento. Refugiamo-nos dele no que calha, seja em ansiolíticos, álcool, drogas, jogos ou outra qualquer forma de ilusão. Somos passageiros de um trem a que tem por destino a felicidade. Viajamos em primeira classe. Evitamos não parar na estação da frustração porque somos filhos da Natureza, ou de Deus, e, por isso mesmo, temos direito a tudo e obrigações nenhumas. Somos eleitos. Melhores do que qualquer um. Olhamos os mais desfavorecidos com altivez como se eles tivessem o que merecem. Temos um secreto prazer em vê-los no chão da sorte. Em contrapartida estamos muito além do que deveríamos possuir. Somos muito injustiçados pela ventura. Merecemos muito mais.
Enquanto seres de espiritualidade, substituímos a religiosidade orgânica por uma fé mecânica. Tornamo-nos ecléticos, passámos a acreditar em várias correntes, e desprovidos de santidade, de humanidade, deixámos de acreditar num mundo melhor mas somente num universo possível onde, arrastando-nos, consigamos contemplar as belas estradas, cheias de traços brancos e resguardos luzidios, pontes e pontões em megalómanas construções arquitectónicas modernas de sumptuosidade.
A esperança deixou de ser o amanhã para ser o agora! ! Imediatamente! Tornamo-nos cépticos militantes. Ninguém nos convence facilmente. Desconfiamos dos amigos, dos familiares, dos políticos locais, do Governo, da Europa e do Mundo. A Globalização assusta-nos e passou a ser o papão-mor de todos os fantasmas. O medo tomou conta de nós e desistimos de arriscar. Nenhum esforço vale seja o que for. Sentimos a nossa fragilidade até para nos soerguermos da cama e abrir a janela para deixar entrar o Sol. Somos versos em estrofe à deriva num poema sem sentido alavancados em uma sociedade dividida entre a nobreza e a plebe. O nobre engorda e o plebeu emagrece e desaparece do nosso olhar.
O amor passou a ter um fim anunciado. É como uma gripe, só dura enquanto há febre. Perdeu o encanto da sua imortalidade. A paixão é o começo e o fim em si mesmo e deixou de ser a ligação à perenidade. Os anciãos, como totens de um modelo relacional a dois que se finou há muito tempo, são fotografias a preto e branco nos valores.
As coisas simples já não tocam a nossa atenção. O virtual ocupou o espaço do material. Passamos bem sem cheirar uma flor encostada às narinas. Apalpar as mamas de uma mulher passou a ser dispensável em planos de visionamento de longas masturbações solitárias. O tradicional deixou de ser a base e passou a mofo de sótão velho. Lavrar um campo, dar os bons dias, ir à missa ao domingo, ajudar o velhinho passaram a ser descrição para a história de um povo tristonho.
A vontade de fuga passou a ser o nosso pensamento diário. O estrangeiro passou a ser a Meca para os mais novos e a aposentação o campo da morte lenta para os de meia-idade e mais velhos. Fugir disto tudo, nem que seja para um outro qualquer inferno pelo menos onde o controlo e o domínio do Estado nos faça acreditar na liberdade que já foi um dia e onde possamos voltar a ser ao mesmo tempo contribuintes e beneficiários.
A poesia morreu na leitura que feneceu e a escrita é cada vez mais um ano novo numa única vez por ano. O que é que vai mudar este ano?


Sem comentários: