Para além da coluna "Elegia ao Homem do Café (2)", deixo também os textos "Reflexão: um amor esquisito", "Baixa: A imagem do desalento" e "Rostos nossos (des)conhecidos: O clandestino".
ELEGIA AO HOMEM DO CAFÉ (2)
Tenho à volta de 50 anos, mas,
precocemente, sinto-me envelhecido e muito cansado. Trabalho desde criança
–mesmo a frequentar a escola básica, juntamente com os meus progenitores, já
labutava na agricultura. Sou do interior, de uma aldeia onde o sol teima em
namorar as ruelas estreitas e beijar a torre sineira da capela de Nossa Senhora.
Assim que pude, como diabo que foge da cruz, larguei rotinas e memórias e vim
para a cidade. Aqui fiz um pouco de tudo. Trabalhei nas obras, numa mercearia,
fui ardina, fui grumete num café. Tudo quanto ganhava ia para o meu pai; a
roupa que vestia era usada e comprada com as gorjetas. Casei cedo, com 20 anos,
estranhe-se, para poder ter liberdade e conquistar a minha independência.
Estabeleci-me por conta própria
ainda novo. Como pesquisador de ouro embrulhado na espectativa, atirei-me à
luta sem freio. Era a minha oportunidade. Tinha de a aproveitar. Acredito que a
sorte só nos tenta uma vez. O pior é que isso, esse esforço hercúleo, deu cabo
da minha saúde. Quem passa por esta vida conhece na pele este desgaste diário. Tomo
uma carrada de remédios –já nem sei se são para o corpo se para alma. Tenho a
cervical feita “num oito”. Devido à pressão diária, tenho hipertensão e sofro
de ansiedade. Tenho reumatismo e já coxeio um pouco da perna esquerda. Mesmo
doente, e contrariamente ao que imaginei, hoje, trabalho cada vez mais para
ganhar cada vez menos. Como peça de locomotiva velha, sinto-me uma roda cada
vez mais lenta e desgastada. Exceto o domingo, que aproveito para descansar a
cabeça mas nem por isso fico inerte cuidando do quintal, diariamente, como
andorinha em céu azul, calcorreio 17 horas. Todos os dias saio do meu estabelecimento
por volta da uma da manhã. Fico sempre depois do fecho para carregar os
frigoríficos e limpar a casa para no dia seguinte estar pronta a abrir.
Repare-se que são dois dias num só. Extraordinariamente não é só a minha família
que não vê o meu esforço; a minha clientela também não dá por isso. Estão
habituados a que eu tenha um constante sorriso colado no rosto, mesmo que
esteja a impregnado de tristeza e solidão por dentro –também ai de mim se
mostrar má cara a alguém. Para eles sou uma espécie de múmia carcomida pelo
tempo, ou computador que nunca falha nem nunca se vai abaixo. Como estão
enganados! Se soubessem como me sinto frágil!
Depois, talvez pelo vento norte
dos valores caídos, hoje é muito difícil estar a trabalhar numa loja hoteleira.
Os clientes, de uma maneira geral, não têm respeito por quem os está a servir.
É o café que está curto de mais, ou cheio, ou frio, ou muito quente; é o pastel
de nata que está descorado, não tem sabor; é o croissant que está duro; o
“Panik” que está malcozido. É com se naquela reclamação projetassem um
ressabiamento e estivesse contida toda a frustração da vida vazia de cada um.
Ninguém se lembra que também sou pessoa, e no meu pequeno espaço, para trás e
para a frente, ando ao dia dezenas de quilómetros. E tantos passos que me
poderiam evitar, sobretudo quando me pedem uma bica. Levo-a à mesa e a seguir
rogam-me um copo de água. E, como peça mecânica, lá volto eu a fazer o mesmo
trajeto. Que raio! Porque não me pedem tudo de uma única vez? Mas como lacaio a
tempo inteiro, sem folga e sem horário, tenho de engolir em seco. E, sem
reclamar, servir –muitas vezes penso que me julgam de uma estirpe inferior,
assim uma espécie de escravo para todo o serviço. Bom, é certo que noutros
tempos era pior, quando a sociedade se dividia entre doutores e criados, mas,
nessa altura, não me importava tanto porque era compensatório. Agora não! Hoje,
numa rotina de modorra, parece que desempenho uma missão “pro bono”, já que mal
ganho para os custos –embora, voltem a admirar-se, apesar de ser apenas
sobrevivente, para os outros, continuo a ser um abastado patrão, com toda a sua
elevada carga estatutária. Que pena ter só a fama e não o proveito!
E os desequilibrados mentais,
outros que tais, e os bêbados que, tantas vezes, tenho de aturar? À força da
minha experiência, acho que me poderiam dar o canudo de psicologia. Como
artista de trapézio em equilíbrio instável e sem rede, no fio da navalha, o que
eu faço para evitar a violência?! Como timoneiro a amarar navios em enseada de
escolhos, levo-os com calma, amanso-os com palavras, e contam-me a vida toda
-sim, porque as pessoas precisam mesmo é de conversar! E eu, atenciosamente, como
padre de paróquia, ouço solenemente os dramas de cada um. Numa escolha sem
opção, sou mesmo obrigado, exatamente, porque precisam de ser ouvidos e ninguém
escuta ninguém. Vivemos numa sociedade cada vez mais egoísta, concentrada sobre
o seu próprio umbigo, e em que cada um se ausculta apenas a si mesmo. Mas, em
minha defesa, tenho mesmo de agir assim, porque qualquer badameco, que não vale
um cêntimo furado, com um copo a mais numa tasca, é um guerrilheiro e julga-se
o “Rambo”. E para quem é que ele vira as deceções lá de casa, quando a mulher o
chateia? Evidentemente que para mim, que pareço firme, que represento tudo o
que ele não tem, e só por isso o irrita. Tal como o meu filho pensa, alguém que
está ali mesmo à mão para arcar com o seu desapontamento. É triste, não é? Continua na próxima edição.
REFLEXÃO: UM AMOR ESQUISITO
Passaram mais uma feira do livro
e do artesanato. Durante anos, gastando uma fortuna numa tenda gigante, foram apresentadas
na Praça da República. No ano passado foram transferidas para o Parque Verde.
Este ano foram divididas entre este e o parque da cidade. Numa interrogação de
retórica, neste andar de trouxa às costas, pergunta-se: se é preciso
revitalizar o Centro Histórico, por que razão não são estes eventos realizados
no coração desta zona velha? E, num interesse mútuo, não são aproveitados os
transeuntes citadinos diários? O Pelouro da Cultura, da Câmara Municipal de
Coimbra, estará mesmo interessado em reanimar a Baixa, ou será simplesmente uma
intenção apregoada de conveniência política?
BAIXA: A IMAGEM DO DESALENTO
As cidades, metaforicamente, são
oceanos onde vive, e transgride, toda a forma de vida. Em todos há um
sentimento comum: sobreviver. Aqui na Baixa, em cenários multicolores de
paradoxo, pode ver-se um sujeito de meia-idade, em posição de abandono, a
dormir num banco de uma qualquer praça. Podemos aperceber-nos de um homem
bem-vestido a comer diretamente de um caixote do lixo. Se tomarmos atenção,
poderemos ver uma mulher linda, de cara de anjo, dolentemente, trocando passos
e olhares furtivos com homens embrulhados em solidão. Mas esta zona de antanho,
tal como outras, é mesmo assim. E, escrito deste jeito, quer dizer que nos
deveremos dar por vencidos e nada se poderá fazer? Não, não é isso. O que
pretendo mostrar é que, por um lado, neste caldeirão social, todos têm lugar.
Por outro, tenho a certeza de que, com políticas sociais de apoio ao emprego, é
possível inverter este ziguezaguear. Tanto é assim que há uma dezena de anos,
quando a economia ainda rolava, estes casos que descrevo, embora pudessem
acontecer, eram menos visíveis e em menor número.
Quando escrevo que é preciso
apoiar o emprego não me refiro a subsídios. Relato, tão só, que é urgente
manter a pequena e média empresa familiar. Atualmente, estamos a assistir a políticas
de remedeio no desastre, a jusante, no atuar na consequência, quando, ao
contrário, antes da catástrofe, deveriam ser preventivas e direcionadas a
montante. É verdade que há demasiada
oferta comercial, todos sabemos, e, sobretudo pela acentuada queda da procura,
mais de metade das lojas terão de reconverter-se para outros ramos de negócio.
Mas, neste momento de conflito economicista e onde a morte de empregos é
diária, não deveria ser preocupação do Governo salvar estas ocupações familiares?
Ora, o que está a ser feito? Em vez de se desonerar, está-se a sobrecarregar
com mais taxas e impostos a pequena empresa e, em subsequência e
inevitavelmente, para além de acelerar a desertificação, vai fazer aumentar o
desemprego.
Depois, aqui no Centro Histórico, está acontecer o impensável:
estão a surgir novos e interessantes empreendimentos que muito vêm valorizar a
zona, mas como não está a ser desenvolvido nada pelas entidades públicas para
manter aqui as pessoas, nomeadamente apoiando a pequena loja e evitando o seu
encerramento, numa fatalidade provocada, não é preciso ser analista para ver
que o futuro destes novos projetos é negro. Era bom que quem manda na cidade
pensasse nisto. Estão a destruir-se vidas e, sobretudo, uma oportunidade de
requalificar a Baixa.
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS
O CLANDESTINO
Como promessa feita na hora da morte
do melhor amigo e em dia de aflição, diariamente, em passo rápido, com um saco
plástico na mão, percorre as ruas estreitas da Baixa da cidade. Estanca junto a
um velho edifício decrépito que parece não ter vida. Sub-repticiamente, como
clandestino em Estado ditatorial, olha em volta em busca de um agente policial.
O ambiente está limpo, parece pensar, e avança para a porta esconsa que no
canto tem um buraco. É então que, como milagre divino, dois gatos miam em seu
redor e os três, em simbiose, homem e animais, em torno da pequena lata de
alimento parecem comungar de amor.
O que faz é proibido pelas leis
dos homens. Ele sabe, mas não entende. O seu afeto na entrega aos bichos é
demasiado profundo e nobre para compreender esta norma legal mas amoral. Mesmo
que morra de pena, como fantasma errante, continuará a amar os melhores amigos
de todos nós.
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