Para além da coluna "Elegia ao Homem do Café (3)", deixo também os textos "Reflexão: em busca da dignidade", "Anildo, o pintor do mundo, faz apelo à CMC" e "Rostos nossos (des)conhecidos: A Diva".
ELEGIA AO HOMEM DO CAFÉ (3)
Quando estou a trabalhar no meu
café há duas coisas que me consomem o espírito e dão comigo em doido. A
primeira é qualquer um, miúdo ou graúdo, chegar ao balcão e dizer: “quero um
copo de água!”. Nem por favor, nem coisa que o valha. Bebem, viram costas, e
nem um agradecimento. Às vezes, quando são infantes ou adolescentes, ainda lhes
atiro: olhe lá, menino, lá em casa o seu paizinho não o ensinou a dizer
obrigado? Mas para que estou eu com esta retórica se o puto olha para mim da
mesma forma que olha para um menhir e, como não entende nada, nada diz. Embirro
com isto! É que todos acham que tenho obrigação de servir copos com água
gratuitamente. Esquecem que aqui pago tudo com língua de palmo, desde o líquido
que mata a sede –envolvendo uma verba em torno dos 75 euros por mês- até à eletricidade.
Sim porque uma pessoa fornece o líquido, mas a seguir o copo vai ser lavado na
máquina. E quem suporta isto? O problema é que este mau vício está de tal
maneira entranhado nos adultos que, numa incompreensível injustiça, passam a
mesma mensagem liberatória aos filhos. Quer dizer, o Governo, na hotelaria,
passou o IVA de 13 para 23 por cento sem se preocupar que esse aumento iria
fazer desaparecer muitos fregueses, e ainda tenho de trabalhar para o boneco? Para
não perder clientes, adivinhem quem está a aguentar essa diferença? Ou seja,
cada vez sou mais apertado na canga dos impostos, ficando cada vez mais
desamparado, e sentindo aumentar a agonia e solidão. Mas, como se fosse pouco,
a clientela, talvez pensando que eu tenho cara de São Sebastião, de mártire assumido
e sofredor, cada vez me quer lixar mais, colocando-me como aguadeiro. Porque há
uma coisa que as pessoas nem imaginam, ao balcão, e sem que me peçam mais nada
a acompanhar, sirvo, todos os dias, dezenas de copos com água –já não estou a
contar com aqueles que acompanham o café. Mas ninguém se importa. Querem é ser
servidos e mais nada! Tanto faz ser o “Zé Malaqueco”, que anda a polir esquinas
ali na praça, como o senhor doutor, que até tem um bom ordenado. Nenhum deles
se preocupa com o ressarcimento da minha prestação. Lá nas suas cabecinhas pensantes,
e numa tradição de antanho, do tempo em que os “chatos andavam de avião”, aqui,
tenho de continuar a servir de borla. Por acaso alguém questiona o facto de
todos os chafarizes populares terem desaparecido das cidades? Por que teriam
sido extintos? Exatamente para as autarquias não pagarem a água. Ou seja, as
câmaras, sendo um serviço público, podem fechar as torneiras e recusar-se a
molhar as gargantas secas, e eu, como privado, sou obrigado a servir à
“borliú”. Estará certo, isto? Que tipo de justiça geral pugna aquele que
reclama dos copos com água, obrigatoriamente, terem de ser pagos?
A segunda coisa que até se me
arrepela os cabelos é a frequência da casa de banho. Tenho dois tipos de
freguesia. O primeiro é o frequentador da casa, que consome e, naturalmente,
usufrui deste serviço. O segundo é o transeunte diário que passa na rua, sente-se
apertado, entra, em velocidade de cruzeiro, atravessa a sala, vai direito à
sanita ou ao mictório… (“txxee”, a fazer chichi)… carrega no fluxómetro, para fazer
desaparecer a mostra, abre a torneira do lavatório… (“txxee”, o barulho da água
a correr)… ensaboa as mãos com o sabão líquido que me custa uma fortuna –e a torneira continua a debitar… “txxee”- passa-as de novo pela corrente, e a seguir
liga o secador de mãos… (“zooommm”, é o barulho irritante da máquina). Sai, agora
mais descontraído. Olha em frente como militar, e ala que se faz tarde. Nem
obrigado, nem bom dia, nem boa tarde, nem até amanhã, se Deus Nosso Senhor
quiser. Lá no pensar dele, a casa de banho, que é para ser usada por quem me
ajuda a viver, é assim uma espécie de parceria público-privada. Com uma
diferença: quem paga a conta é o privado, que, por acaso, sou eu. Este “usar e
porta-fora” das casas de banho, em raciocínio, é igual aos dos copos com água.
Ninguém se preocupa com os gastos que dão ao dono do café, que por acaso sou eu
–se fosse dele, tenho a certeza, o comportamento seria completamente diferente,
porque só quem sofre as agruras das setas sente o estilete da dor. Já alguém se
deu ao trabalho de pensar na razão de haver pouquíssimas sentinas na cidade?
Porque será? A mesma que implica os chafarizes. É óbvio. É que não há almoços
grátis, é preciso pagar. Aqui reside o verdadeiro busílis destas questões.
Agora diga-me, você leu a
reportagem da revista Visão, há umas semanas, sobre a cobrança de 50 cêntimos
por servir um copo de água, no Algarve, e até se indignou muito contra o dono
do café. Foi, não foi? E até lhe chamou miserável. Verdade? Agora, depois de
ler estes meus desabafos, continua a pensar do mesmo modo?
Se continua, desculpe que lhe
diga, mas você é mesmo um “cabeça-dura” e um terrível egoísta. Porque é que não
abre um negócio de café? Experimente! Verá que tudo o que escrevi aqui é a mais
pura das verdades.
REFLEXÃO: EM BUSCA DA DIGNIDADE
(IMAGEM DA WEB)
Perante os tempos conturbados que
vivemos, cada vez mais é preciso rebuscar no fundo da alma a sensibilidade para
os problemas emergentes de quem nos rodeia. E se alguém, pelo exemplo, mais
deve (deveria) estar atento é a administração pública. Bem sei que nos habituámos
a encará-la como máquina, pesada, insensível e sem afeto, mas não podemos
esquecer que a comandá-la estão pessoas com coração a bater. Se perante situações
como esta que retrata o Anildo, em que se exige compreensão e complacência,
este aparelho se mostra frio e distante, temos, todos, obrigação de repudiar
este comportamento. Não é admissível que a Câmara Municipal de Coimbra trate
desta forma os vendedores ambulantes da Praça do Comércio ou outros quaisquer.
Estes mercadores são pessoas, com a sua inalienável dignidade, que precisam de
comer todos os dias como nós.
ANILDO, O PINTOR DO MUNDO, FAZ UM APELO À CMC
Quem calcorreia diariamente as
pedras graníticas destas ruelas e encruzilhadas, da Baixa, conhece-o melhor que
a qualquer presidente da Câmara Municipal. Falo do Anildo Mota, o nosso pintor
de serviço, com poiso diário ali junto à Igreja de São Bartolomeu e, através
dos retratos e pinturas que vende a estrangeiros, embaixador cultural de
Coimbra para o mundo.
Se o toparmos de longe, com o seu
porte atlético e ar façanhudo, até poderemos pensar que será antipático. Porém,
se entabularmos conversa, imediatamente vemos que estamos perante um ser
sensível, cordato, solidário e alegre, um amor de pessoa, ou não fosse ele de
origem brasileira.
O Mota é um cidadão do Universo.
Há 24 anos que largou o Brasil, a terra gravada a fogo no seu coração, e veio
para a Europa. Esteve em França, sempre nas artes plásticas, e como lá o
inverno é penoso, começou a visitar Portugal nesta quadra. Como um bem-querer que
se vai instalando no peito, aos poucos, foi-se apaixonando pela Lusa Atenas e,
há cerca de 15 anos, acabou a fazer vida, juntando os seus trapinhos, com a
cidade e por cá ficou de vez. “Gosto muito desta cidade, rapaz!”, diz-me na sua
voz bem timbrada e marcante nas sílabas.
Mas o Anildo está descontente na
forma como tem sido tratado nos últimos anos pela autarquia de Coimbra –“eu e
os meus colegas vendedores aqui ao meu lado, não esqueças de falar neles”,
sublinha com a sua preocupação de camaradagem. Então, sendo assim, para melhor
ficar, conta lá tu, Anildo. Fala, companheiro: “ói pá, estamos aqui na Praça do
Comércio há muitos anos a vender e a tratar da nossa vida, como sabes. Em 2003
entrou em vigor o novo Regulamento de Venda Ambulante do Município de Coimbra.
A partir daí, ao abrigo do nº 1 do art.º 8, passámos a ser detentores de uma
licença especial renovada de três em três meses. Achas bem, companheiro? Como é
que podemos viver assim há uma década neste vínculo precário, na “corda-bamba”,
sem nunca sabermos o que vai acontecer no fim do prazo? É uma insegurança
permanente. Como tudo em Portugal, assim neste “jeitinho” português, neste
deixa-correr no temporário que se transforma em definitivo. Estás bem a ver,
meu irmão? Vive-se assim numa certa forma de improvisar. É indecente, é abusador,
é discriminatório e um desrespeito pela dignidade de um qualquer trabalhador.
Sabes que a edilidade, na semana
passada, comunicou à minha colega Dores o indeferimento da sua autorização
especial. Ela, conjuntamente com o marido falecido, está aqui a vender há 30
anos. Estará certa uma coisa destas, num período de crise e desemprego como o
que estamos a atravessar, companheiro?”
Continua o Anildo, “se o senhor
presidente da câmara Municipal de Coimbra, João Paulo Barbosa de Melo, ler esta
minha carta, apelo à sua sensibilidade para as manifestações artísticas de rua,
que é algo comum em todos os países europeus. E que, através da sua
suscetibilidade, saiba fazer a distinção entre cultura e arte e incentive em
vez de reprimir. Concordo que a imagem presente neste momento dos vendedores,
nesta praça velha, tem de ser alterada. A autarquia pode e deve exigir umas
tendas padronizadas e de acordo com o meio envolvente e que se enquadre na
imagem da Baixa. Diga o que quer e nós cumpriremos. Não retire é o nosso
ganha-pão, senhor presidente!”
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS
“A DIVA”
Já passámos ao seu lado milhentas
vezes nestas ruas estreitas e empedradas, calcorreadas por poetas, escritores,
artistas e simples anónimos como nós. Normalmente faz-se acompanhar com dois
cães. Escrevo sobre a senhora Odete Pinto. A sua idade é um mistério perdido
nos labirintos da vida. “Setenta e tal”, sem me dizer ao certo, porque, afinal,
é uma falta de respeito querer saber a idade de uma dama. Nasceu ali para os
lados dos campos arados de Arazede, onde por lá, fazendo um pouco de tudo na
agricultura, transpirou a estopinhas.
Migrou para a cidade onde por cá
já fez de tudo um pouco. Há cerca 30 anos –“quando ainda era boa como milho”,
diz-me- encontrou o amor da sua vida e seu actual marido, que é 25 anos mais
novo. “Ficou caidinho por mim e quis casar logo. Nem me deu tempo para pensar”,
enfatiza. “Hoje sou feliz mais ou menos. O problema é quando ele se mete nos
copos. Arruma carros lá em cima junto ao IPO. Com um “grão na asa” trata-me
menos bem. Às vezes até lhe digo: ó Fernando, “carago”, se não cuidas de mim,
ao menos pensa nos nossos dois cães!”, confidencia. Recebe de reforma 369 euros.
Vivem todos numa casa velhinha, ali para os lados da Conchada, onde paga de
renda 13,50 euros, mas a senhoria é uma boa pessoa. “Vai para o céu”, tem a
certeza.
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