quarta-feira, 20 de junho de 2012

CRIMES NOSSOS, SANTIFICADO SEJA O SENHOR

(IMAGEM DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)


 Hoje a primeira página do Diário de Coimbra (DC) atira-nos com o título “Empresário da Mealhada mata por ciúme e suicida-se”. Recorrendo ao interior, podemos ler “Na localidade de Carquejo (…) Homem entrou em stand e matou filho do dono, a tiro de caçadeira, com que terá posto termo à vida. (….) Pelo menos parece certo que Michel, com cerca de 40 anos, casado e pai de dois filhos (um de 18 e outro de 13 anos), estaria emocionalmente envolvido com a mulher “ da vítima.
Perante esta notícia do DC, não é minha intenção fazer juízos de valor sobre este nefasto acontecimento, embora me pareça que, para além dos motivos passionais apresentados como justificativos pelo jornal, haverá outros fundamentos que levaram a este triste desfecho.
E peguei neste assunto –que não conheço para além do que vem no periódico-, no fundo para tentar reflectir sobre a constante violência que, junto à nossa porta, nos está a cair todos os dias. É que, contrariamente ao que se procura fazer crer, o “leitmotiv”, o motivo condutor que está por detrás de um facto bárbaro deste género não é a paixão dominante entre dois seres, mas sim o tempo de carência que vivemos. Isto é, a profunda crise, de valores, de princípios, financeira, económica, social, que estamos atravessar. Como pano de fundo, num palco que é a vida, temos toda uma comunidade que, em vez de estar comodamente sentada a ver o espectáculo, ferindo-os lancinantemente, assiste de joelhos a todos os dramas que passam aos seus olhos. Nos intervalos, como romeiro em missa campal em dia de violenta canícula, volta e meia, cai um assistente e estatela-se ao comprido. Depois outro, outro, e outro mais. É como se a resistência física e anímica de cada um de nós a olhar para os outros estivesse nos limites. E, no fim da linha, já sem olhar às consequências, como se já não tivesse nada a perder, num último grito de “kamikase”, estoiram tudo à sua volta e eles mesmos –comparemos por momentos a actuação dos soldados japoneses na 2ª Guerra Mundial, os mártires na Palestina e estes casos, nos dias que correm,  na Europa, em Portugal.
A questão é: até onde vai confluir esta violência? É certo que, parodoxalmente ao que se possa pensar, não é exclusivo deste tempo. Por acaso, ando a ler um pequeno livro de 1910, de um autor francês mas traduzido para português -"As mentiras convencionais da nossa civilização, de Max Nordau e tradução de Agostinho Fortes-, em que há lá passagens que parecem copiadas dos tempos hodiernos. Ora, se repararmos, passou um século. O que me leva a crer que no fundo, bem no fundo, os valores –vida, ambição desmedida, enriquecimento a todo o custo- não mudaram assim tanto. O que acontece, parece-me, é que os instintos humanos podem permanecer adormecidos durante décadas –algumas vezes, quem sabe, devido a fenómenos marcantes de sangue, como as duas guerras mundiais-, mas, mais tarde ou mais cedo, como molas retesadas, saltam e voltam ao seu estado primário de animalidade. Dá-me a entender que perante actos de violência como este, como outros tantos que tem assoberbado o país, ninguém se importa. Olhamos todos para estas manifestações como subsequências do ser humano. Entretanto, como não se procura conter através da prevenção clínica e psicológica, vamos todos vendo cair os nossos vizinhos. Talvez valesse a pena pensar nisto?




PEQUENOS EXTRACTOS DO LIVRO DE MAX NORDAU (COM O PORTUGUÊS JÁ ADAPTADO AOS NOSSOS DIAS):


"A instrução e a civilização espalham-se por toda a parte e apoderam-se das mais selvagens regiões; não se passa um dia sem que se veja surdir uma nova e maravilhosa invenção que torna a terra mais habitável e ajuda a suportar mais facilmente os enfados da vida. Contudo, apesar do aumento de todas as condições do bem-estar, a humanidade está mais descontente, mais inquieta, mais agitada, do que nunca. O mundo civilizado não passa duma enorme enfermaria, cujos doentes enchem os ares com pungentes gemidos e se contorcem, vítimas de todos os sofrimentos."


(...) A humanidade civilizada pratica em larga escala o acto do indivíduo que tenta afogar as mágoas numa garrafa; a humanidade deseja escapar à realidade e exige as ilusões de que carece, às matérias que lhas podem fornecer. Esta depravação do instinto, esta momentânea fuga da realidade, originam o desejo lógico de sair dela definitivamente pelo abandono da vida. (...) O número de suicídios aumenta na razão directa do consumo de álcool e narcóticos. (...) Tudo isto provém da mesma causa que nos romanos cultos da decadência produzia desgostos em presença do vazio da vida, de que supunham só poderem libertar-se pelo suicídio."

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