Há um ano, na data de antes de
ontem, faleceu o Luís Miguel, mais conhecido entre nós por “Aspirante” –o Luís
tinha 40 anos quando num estúpido acidente adormeceu na berma do Mondego e,
segundo o pai Max, vindo a cair no rio. Era tratado pela alcunha de “Aspirante”
precisamente porque fora a patente que tivera enquanto cumprira o serviço
Militar. Enquanto decorria o tempo de tropa viera a sofrer um grave desastre,
em que faleceu um seu amigo. Pelos danos causados, psiquicamente, nunca mais recuperaria
o senso. Durante muitos anos vagueou pela cidade. Aparentemente, não
desencadeava exteriorizações de extraordinário afecto. Parecia ser apenas mais
uma personagem que deambulava pelas ruas estreitas e largas do casco urbano de
uma cidade velha.
Quando, há um ano atrás, escrevi
a crónica a anunciar o seu precoce desaparecimento, para além de ter recebido
mais de uma vintena de comentários dolorosos e a lamentar a sua morte, só nesse
dia tive 8438 visitas aos textos que reportavam a sua passagem entre nós –a
média diária de visitantes assinalados anda por volta de 500.
Hoje escrevi sobre a morte súbita
do Adelino Paixão noticiada pelo jornal Diário as Beiras, e com assinatura do
repórter coordenador, Paulo Marques –o Paixão era, tal como o Luís Miguel, mais
uma figura típica da Baixa que, também na aparência, era mais um e poucos lhe
ligavam.
Hoje, até à hora a que escrevo,
cerca das 17h00, o blogue teve cerca de 1500 visitas.
Depois desta longa introdução,
penso que dá para ver onde quero chegar. O que pode explicar que durante a vida
errante destas pessoas, durante muitos anos, enquanto circularam por entre nós,
nunca lhes tivessem ligado muito, nem dado qualquer importância, e depois,
subitamente, quando colocados perante o seu nefasto sumiço, reagem com redobrado
pesar e dor?
Se respondermos sem pensar, assim
no óbvio, estou certo que retorquimos com uma palavra: hipocrisia. Porém, a meu
ver, esta manifestação de pesar é muito mais profunda e, estranhamente, é mesmo
sentida como um corte na alma de cada um.
Vou explicar-me e, ao mesmo
tempo, reflectindo, tentar desbravar o que está por detrás deste comportamento
e, não se vendo, pressinto.
Começaria por interrogar: o que
são estas pessoas numa cidade? Carlos do Carmo, em fado versejado e musicado,
chamou-lhes os “loucos na cidade”. Há cerca de 30 anos li uma tese de um
advogado francês –que já não recordo o nome- em que defendia que estes
indivíduos, diferentes da maioria, talqualmente como a pequena delinquência,
eram um quebrar da rotina nas urbes e, na sua acção pragmática, ainda que, por
vezes, negativa, impediam que, em mimética estandardizada, fosse tudo igual.
Por outras palavras, transportemo-nos para um agregado onde não se ouve um
barulho, uma imprecação, onde tudo é previsível, onde a paz social é uma
constante, um lugar paradisíaco, será que conseguiríamos viver num lugar assim?
Penso que não. O homem é um ser social e ao mesmo tempo associal, tanto precisa
de estar só como acompanhado. É capaz das maiores demonstrações de carinho, de
solidariedade e bondade. No entanto este mesmo homem, a qualquer momento, é
capaz de, num repente, virar homicida e assassinar sem mácula na consciência.
Se for em guerra, com a desculpa de estado de necessidade, mata dezenas,
centenas, milhares de humanos. É portanto, em sincronismo, um ser pacífico e
conflituoso. Isto para dizer que, para além de todos sermos bipolares, temos
absoluta necessidade de exteriorizar os dois sentimentos que transportamos
dentro de nós como instintos siameses.
Então, chegados aqui, em jeito de
balanço, já poderemos ver que embora todos defendamos a paz social como objecto,
diariamente, no relacionamento com os outros, fomentamos a antipatia, a
desconfiança e a animosidade permanentemente. Isto é, o desejo de pacificação não
é mais do que uma miragem, uma utopia. Por outro lado a ordem que todos
parecemos obsessivamente buscar quando a alcançamos pode já ser o caos –isto
tem já a ver com a dinâmica social e o perfeccionismo que nos consome.
E então, interroga-se, o que tem
estes dislates que escrevi atrás a ver com os dois comportamentos antagónicos –desprezo
em vida e carinho na morte- perante um óbito? Que pode não ser somente um
vagabundo da rua e, pela proximidade, ser alguém relativamente chegado?
Pelo conhecimento implícito, um
falecimento desencadeia sempre em nós várias sensações desencontradas.
Lembra-nos, por exemplo, que somos finitos, que a nossa vida é efémera, que a
qualquer momento podemos perecer –este pressentimento torna-se mais lactente
tanto quanto mais velhos estivermos e próximos do fim. Mas, acima de tudo, na
generalidade, no âmago de cada um, acende a luz do perdão, da caridade, e
extingue ódios recalcados. É como se aquela imagem da morte de outrem nos
viesse lembrar que somos todos pecadores. Seres frágeis e fracos, e que, um
dia, não se sabe quando, iremos também precisar daquela absolvição. Digamos,
por outros termos, que, no nosso viver compulsivo, o desaparecimento de alguém,
uma morte súbita, que tomemos conhecimento, toma assim no quotidiano o efeito
de choque de um objecto arremessado na nossa cabeça.
Por outro lado, isto em relação
ao desaparecimento destas pessoas invulgares -chamemos-lhe dementes ou outro
nome qualquer- que nos cruzamos na rua mas que, provavelmente, nunca trocámos
uma palavra ou um sorriso mas que, inconscientemente, passamos a admirá-los,
penso, para além do sentimento de perda, solta também várias intuições
diferenciadas. Enquanto vivos, transeuntes na cidade, olhamos para eles como o
outro lado do espelho, o reverso de nós, a nossa alma despida. Ao mirá-los,
naquele estado decrépito, é como se fizéssemos comparação entre o que somos e o
que poderíamos ser. Vemo-los como a materialização dos nossos medos. E ao
constatar que somos diferentes para melhor recebemos uma mensagem de bem-estar
instantaneamente. É como se ao vermos uma pessoa assim diferente nos obrigasse
a um balanço imediato, mas também passível de ser emergente num futuro próximo
e esta impressão, pela dureza da imagem viva, activa a nossa defensiva e
alerta-nos para um hipotético perigo. Esta ilacção, em projecção mental, pode
continuar até ao desaparecimento físico e visual da pessoa fixada pelo nosso
olhar. Nesta altura, quando perdemos esta visualização, haverá um sentimento de
culpa que se liberta em pena e dor materializada na disponibilidade em fazer o
que for preciso para colmatar o que não foi feito anteriormente. Como se, em
cada um de nós, houvesse uma implícita e absoluta necessidade de expiação de
culpa pelo lapso. Poderemos pensar que haverá nesta manifestação um descarregar,
um lavar da alma, por, durante anos e anos, nunca lhe darmos qualquer
importância significante.
Não sei se concorda com esta
divagação. Provavelmente não. Foi apenas uma tentativa de reflexão. Nada mais
do que isso.
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