sábado, 30 de junho de 2012

A FERRADURA

(As Alminhas de Barrô)

 Ela transpôs a porta da loja em passo ligeiro. Tinha um aspecto de boneca e parecia deslizar nas entrelinhas da luz. Ou melhor, com aqueles cabelos compridos alourados a emoldurar um rosto bonito e simples, aquela imagem de mulher poderia perfeitamente constituir o paradigma do sonho de felicidade de qualquer masculino com o coração embrulhado em nuvens de solidão. O corpo, bem torneado, assim meio esguio, fornecido com dois seios pequeninos e bem modelados, que, para qualquer homem, pensando poder afagá-los em ardente desejo, poderia ser o ideal de prazer eterno. Duas pernas bem desenhadas adivinhavam duas coxas roliças e elegantes a acabar numa cintura de número 36.
“O senhor vende ferraduras?”, atirou-me de chofre. Confesso, tenho uma especial atinência para tentar entender o que está por detrás da superstição. Não porque me considere superior a estas pessoas ou a outras quaisquer. Eu também já fui assim. Já acreditei em tudo isso. Mesmo até na religião, aliás, fui baptizado, fiz a primeira-comunhão e casei pela igreja Católica. Na nossa geração, nascidos em meados de 1950, era assim. Curiosamente, quando penso em religião, não posso deixar de pensar num episódio da minha infância. Juntamente com os meus pais, em 1963 tinha 7 anos, vivia numa aldeia entre a Mealhada e o Luso, Barrô. A escola primária, como era então conhecida, estava localizada num outro lugar, a Lameira de São Pedro, que distava, em linha recta, cerca de cinco quilómetros. Este caminho, em ida e volta, era percorrido a pé, diariamente, por todos os alunos. Ao sair da povoação, já numa zona descampada e sem habitações, estava a pequena capela em honra das Alminhas –só para lembrar, antigamente encontravam-se pequenos altares ao longo das estradas ou caminhos rurais. Eram, portanto, um local, que até poderia ser escavado numa rocha, em forma de oratório com uma pequena imagem, onde se deixava uma oração, uma flor, ou uma vela, em culto aos mortos. Hoje estes locais fazem parte do nosso património artístico-religioso.
Neste caso das Alminhas da minha aldeia, foi mesmo construída uma pequena capelinha onde caberiam lá dentro três ou quatro pessoas. Espreitando pela porta encerrada e apenas aberta uma vez ao ano, encimada por uma cruz, poderia ver-se um pequeno altar com uma imagem alegórica que já não lembro. À sua volta estava um pequeno terreiro, em terra batida, onde, com um grande bailarico, se comemorava a festa anual.
Então, retenho na memória de, a caminho da escola, muitas vezes, ter parado junto à capelinha. Não me lembro bem, mas, é possível que estas paragens ocorressem em dias de prova escrita. Recordo perfeitamente de entrar em negociação directa com as Alminhas: “se eu tirar boa nota dou-te um tostão –dos cinco tostões que o meu pai me há-de dar no próximo domingo para eu ir ver televisão na venda do senhor António da Loja”. Não sei quantas vez fiz isto, o que me parece é que, naturalmente pelo temor, sempre que as Alminhas me valeram eu teria cumprido e lá teria colocado o tostão debaixo da porta de madeira.
À medida que fui avançando na idade, continuei a acreditar na religião e também nos amuletos, incluindo o efeito da ferradura –que há muitos anos recordo ter pregado uma por cima de uma porta para apelar à boa sorte. O tempo foi passando e há uma década entrei na Universidade, em direito (curso que não concluí). Fosse lá, ou não, pelo ensino ali ministrado –o que para mim também é estranho, no sentido de que tive alguns professores muito crentes-, a verdade é que, progressivamente fui-me tornando racionalista e deixando de acreditar em forças que transcendem os humanos –é óbvio que não discuto se estou certo ou errado. Não coloco em causa quem acredita. É apenas uma questão de fé, e, reconheço, não sou abençoado com este dom. Ponto e parágrafo.
Então, sempre que me aparece alguém a querer comprar uma ferradura, um livro de São Cipriano, um dólar, uma moeda de tostão, umas figas, etc., sempre que tenho possibilidade, tento falar com a pessoa. Umas vezes, quando me perguntam se o objecto em causa dá sorte, respondo que sim, desde que se acredite com fervor –e acredito mesmo neste princípio. É aqui que o mistério da fé se revela. Não tenho qualquer dúvida em afirmar que o dogma, o acreditar sem pôr em causa o poder superior subjacente, pode fazer, de facto, milagres. Já em relação ao livro de São Cipriano –este santo foi um feiticeiro do século III que se converteu ao cristianismo e escreveu um livro de feitiçarias e rituais de ocultismo do quotidiano com o seu nome-, quando me interrogam se lê-lo faz mal e o seu conteúdo, nas suas indicações, funciona, costumo dizer que não há livros bons ou maus. Os manuscritos são apenas instrumentos, mensageiros, do pensamento materializado do seu autor e será catalogado de óptimo ou medíocre pelo leitor consoante o interesse do tema expresso, Portanto, em suma, não haverá livros bons nem maus. Há apenas livros.
Interroguei então a senhora da razão de estar a adquirir uma ferradura. O que lhe aconteceu? Será que está sem emprego? Quem sabe afogada em dívidas? Será que tem um filho que lhe dá imensos problemas? “Não”, enfatizou. Tudo o que enunciei corria bem. Até habitava em casa própria. Então? Não me diga que procura um amor? Interroguei. “Pois é isso mesmo!”, respondeu-me sem pudor. Como é possível? Voltei a questionar-me perante tanta beleza. E a senhora faz alguma coisa para conseguir uma paixão? Isto é, vai a um bailarico, a uma discoteca dançar, está inscrita na Internet, num site, sai ao domingo, vai ao cinema, ou passear no parque? “Não, não vou, só saio de casa para o trabalho”, respondeu-me. Então como é quer que a minha ferradura faça efeito? Voltei a indagar. Para não voltar cá reclamar, vou oferecer-lha. E a mulher bela, com um sorriso envergonhado, certamente a pensar no que lhe disse, saiu à procura de um vento místico que lhe traga um abençoado amor.

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