Decorria Novembro de 1960. Não se
sabe se o facto de Jonh F. Kennedy, logo a 1 desse mês, ter ganho as eleições
nos EUA e com toda a vaga de esperança de paz e prosperidade que varreu o mundo
teria influenciado Manuel dos Santos Machado a apostar na vida comercial.
Também era certo que tinha 23 anos e saíra recentemente da tropa. Para além de
um louvor por bom comportamento averbado na caderneta militar, onde se pode ler
“Louvado pelo Exm.º Comandante do Regimento de Artilharia Nº 2 (…), por durante
a sua permanência nas fileiras ter demonstrado possuir perfeito sentido das
responsabilidades, grande correcção e desejo de bem servir, qualidades estas que
o tornam merecedor de ser apontado como exemplo a seguir pelos seus camaradas”,
pela experiência ali acumulada, trazia consigo um saco carregado de ambição. Em
boa verdade, sejamos justos, o serviço militar, pelo elogio escrito e traquejo
adquirido, apenas veio ratificar uma prática que já vinha desde a infância.
Filho de mãe viúva precocemente e muito humilde, com 11 anos, em 1948, entrara
para a Casa do Gaiato, em Miranda do Corvo. Cedo começou a trabalhar em vários
ramos e em grandes firmas da cidade. Passou pela Farmácia Sitália, na Sé Velha,
pela fábrica de mosaicos ÁS, na Guarda Inglesa, pela Soares & Múrias, junto
à Estação Nova, pela distribuidora de O
Século e pela firma de peças de automóveis J. Mendes, desaparecida há menos
de um ano, na Avenida Fernão de Magalhães.
Se o sofrimento depura a alma,
Machado, para além de saber onde colocava os pés, tinha um plano idealizado
para a sua vida. Esse foi o ensinamento que aprendera na Casa do Padre Américo.
Foi assim que nesse Novembro de 1960 soubera que a dona do Quiosque da Praça e também proprietária de uma barbearia junto ao
Café Mandarim ficara viúva e tencionava largar o negócio de jornais e revistas.
Foi falar com a empresária acerca da intenção de adquirir a pequena tabacaria.
Acertaram o trespasse por 16 contos
de reis desde que a autarquia autorizasse a passagem. Dirigiu-se à edilidade e
pediu para ser recebido pelo presidente Moura Relvas. Sem grandes formalidades
estava à frente do chefe da Câmara Municipal de Coimbra a explicar o seu sonho
de se tornar comerciante. O velho presidente, percebendo que estava perante um Gaiato, pareceu sensibilizado e tocado
pela força do rapaz, mandou-o levar no dia seguinte a Caderneta Militar. Quando
Relvas se deparou com o louvor no livrete mandou chamar o secretário,
licenciado em direito, e na hora, ali mesmo, exararam um requerimento. Quando
saiu dos Paços do Concelho, com a obrigação de pagar 300 escudos por ano, era o
novo dono da mais célebre tabacaria da Praça da República e daqui para frente
baptizado de Quiosque do Senhor Machado.
O FAROL DA PRAÇA
Como homem precavido vale por
dois, apesar de agora ser patrão, não largou o escritório da fábrica de
mosaicos ÁS. Embora nesta altura ainda solteiro, já namorava há uns anos aquela
que viria a ser a sua companheira de uma vida: a Teresa. Como esta tivesse uma
irmã que entendia de vendas, foi esta, a Otília, que durante cinco anos esteve
à frente do pequeno estabelecimento. O Machado ia abrir e expor os jornais e
revistas ao raiar da aurora. Voltava à hora do almoço e no crepúsculo ia
encerrar já noite dentro. Quem não se lembra de cruzar com um homem que
caminhava a passo apressado, quase correndo, a fazer lembrar o speedy Gonzales, entre a Baixa e a Praça
da República? Era o Machado a tentar ultrapassar o tempo e a ensaiar que o dia
tivesse a 25º hora.
Um ano depois casou e em 1965 a Dona Teresa, como é ainda carinhosamente
tratada, passou a ser a extensão física e emocional no velho quiosque -que já
viria desde 1900 e chegou a ser cabine de agulheiro de eléctrico- e de toda a
prole dos Machados.
Como farol que ilumina e conduz
marinheiros na infinidade da vida, durante décadas o velho quiosque era um pólo
inevitável de atracção. Por lá passaram os inesquecíveis cromos da cidade, como o Daniel Tatonas,
o Taxeira, o Adelino e o Pedro, ou
mais vulgarmente conhecidos por Maló
e o Chuças, e o Pirilau. Lá foram clientes personalidades importantes da política,
como, por exemplo, Fausto Correia que ali ia sempre levantar os números 0 e 1
de todas as publicações. Mesmo quando esteve no Parlamento Europeu assim
acontecia.
Conheci bem esta catedral de
sapiência e humanidade. Comecei a trabalhar no Mandarim em 1966, e saí em 1972.
Não exagero se disser que o meu gosto pela leitura foi despoletado pela
generosidade da dona Teresa e boa vontade do senhor Machado. Como não tinha
possibilidades de comprar qualquer pequeno livro, numa bondade sem limites,
eram-me emprestados para eu ler encostado ao velho quiosque. Ali, na penumbra
da sua sombra, li tudo o que era publicação do Falcão, Mundo de Aventuras,
Condor, FBI, Xerife e tantos outros que não lembro. Bem-haja, senhor Machado e
dona Teresa pelo que fizeram por mim. Nunca lhes conseguirei pagar. Este pequeno
arrazoado será apenas o juro de um tempo fantástico e de extrema utilidade para
tantos. Com este encerramento do velho quiosque, e com o vosso afastamento,
tenho a certeza, a Praça da República, nunca mais voltará a ser a mesma.
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