No meu tempo de menino, o
estabelecimento de ensino onde tomei contacto pela primeira com as letras
chamava-se escola primária. Como tudo
na vida é dinâmico e sujeito a alterações naturais e humanas, depois do 25 de
Abril de 1974, talvez por se pensar que primário,
por ser sinónimo de rude, seria demasiado redundante e identificativo de um
tempo que se queria apagar da história a todo o custo, e, por isso mesmo,
alterou-se para escola básica. O
mesmo é dizer que tudo ficou exactamente igual, porque ambas as palavras, primária e básica, tem o mesmo significado. Mas, comparando as épocas de 1950/60
e posteriores até aos nossos dias, será que quanto ao seu significante, na
parte concreta, terão o mesmo significado?
Bem sei que, pelo emaranhado,
você está prestes a saltar desta barcaça textual. Peço-lhe, aguente mais um
pouco. Deixe-me tentar explicar melhor. Para ser mais claro vou direito à
questão: enquanto conceito, ideia geral e abstracta de uma realidade, a escola primária antiga terá alguma coisa a ver
com a escola básica moderna? A meu
ver, responder a esta questão objectivamente é fácil. Já subjectivamente, do
ponto de vista de cada um, não será assim. Para os mais velhos, dessa época, é
mais que certo afirmarem que a antiga 4ª Classe valia hoje um doutoramento. No
entanto, para os jovens de hoje, esse ensino, para além de anacrónico, não
fazia sentido. Para já não me alongarei mais na opinião.
Como se fosse possível esvoaçar
por cima de cada um dos cenários, o passado e o presente, tendo em conta o
tempo, a circunstância, o bem-estar e o desenvolvimento, vamos tentar analisar
cada um deles. Em farrapos de memória, retenho pequenos fragmentos de quando
entrei pela primeira vez, em 1962, na Escola Primária da Lameira de São Pedro.
Os meus pais, agricultores, não sabiam ler. Embora à distância de 50 anos,
consigo recordar o entusiasmo com que pisei a sala masculina orientada pela
Dona Odete, mestra de inegável carisma –nesse tempo haveria três classes
profissionais que gozavam de pleno respeito: o professor, o médico e o padre. O
primeiro ensinava para a vida; o segundo ajudava a conservá-la; e o terceiro
marcava as suas etapas, baptismo, comunhão, casamento e funeral. Aqui, nesta
última, tratava da sua encomenda para a eternidade. Ao lado do compartimento
reservado aos cachopos estava a turma feminina regida pela Dona Adélia –
saliento este tratamento respeitoso de Dona
que, apesar de diferenciado do comum, não era suficientemente desinserido do
contexto social. Simbolizava apenas uma pessoa que, pela actividade profissional
desempenhada, se notabilizava. Digamos que, contrariamente aos nossos dias, a
deferência era conquistada pelo trabalho desenvolvido na comunidade e não pelo
título adquirido no Magistério Primário.
Apenas como curiosidade saliento
o facto de as meninas, mesmo nos intervalos, nunca se misturarem com os
rapazes. A cada género seu espaço de lazer.
Há distância de meio século, interrogo-me
como é que sendo a escola um delta social onde vinham desaguar todas as classes
sociais, lembrando os mais pobres como eu e outros e em que cada criança trazia
consigo uma herança pesada que as diferenciava dos mais abastados, como é que
os infantes viviam sem psicólogo? Como é que, comparando com a actualidade,
alunos meios descalços, tantas vezes sujos e de calças remendadas, e com necessidades
alimentares, poderiam progredir sem serem sinalizados e intervencionados? Mais
ainda, sabendo nós, os nascidos nessa época, que após o tempo de aulas os mais
carenciados economicamente iam guardar cabras, ou apanhar erva para os gados,
ou recolher lenha -em que o aforismo “o trabalho do menino é pouco, mas quem
não o aproveita é louco”-, como é que se pode entender que o insucesso escolar
era meramente residual, superficial e pouco expressivo? Quem fazia milagres? Os
professores? Ou os alunos que, mesmo com dificuldades cognitivas e disfunções
de regulação emocional e comportamental, viam na escola a oportunidade de fugir
à miséria e alcançar um futuro auspicioso e melhor do que o dos seus
progenitores? Havia alunos difíceis, problemáticos e mal-comportados? Havia sim.
Havia discípulos que não passavam da primeira classe? Havia sim. Mas poucos. A
maioria atingia o zénite do saber e passava no exame final e após os quatro
anos de primário. Nessa altura não se falava em discriminação, positiva e
negativa, alienação, ou exclusão. O ensino primário de meados do século XX era
formatado? Era ideológico? Era pesado e com base na disciplina imposta pela
força do estatuto da mestra? Era tudo isso, sim. Mas os estudantes, de uma
forma geral, aprendiam mesmo.
Após mais de três décadas, em que
se mudou o ensino primário,
ultrapassado, para ensino básico, moderno
e progressista, em que a escola, as
poucas que ainda resistem abertas, deixou de ser o estuário de confluentes e
passou a ser um caldeirão de experiências de incerteza, a escola, enquanto
instituição educacional e formativa estará melhor? Tenho a certeza de que não
está. Passou-se dos oito para o oitenta. Falta o meio-termo para formar
cidadãos para a vida. Uma grande salva de palmas para a minha Escola Primária
da Lameira de São Pedro, infelizmente encerrada.
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2 comentários:
Ao tempo que não passava por aqui. Ao tempo que eu própria não escrevo nada!! Hoje, porém, não sei porquê, decidi parar um pouco e revisitar o que eu escrevi sobre as saudades de minha Mãe e depois, vim parar aqui. Não há coincidências?! Este seu post levou-me até à minha infância, à minha escola primária. Não básica! Tão importante que foi na minha formação! E à minha prof. D. Lucinda Jordão. E aos dias felizes (mesmo que com algumas reguadas :)))... e à minha Mãe! Tive o prazer de ter as duas prof. que mais me marcaram na festinha dos meus 50 anos. A D. Lucinda e a Drª Teresa Coimbra. E a minha Mãe. Foi um dia feliz. Poder ter comigo os amigos mas sobretudo as pessoas que me "moldaram" no bom sentido. Mulheres! Grandes Mulheres. Exigentes (a minha Mãe com uma exigência mais doce, terna, alegre e marota). Para além de me ensinarem a ler, escrever, contar, etc. (D. Lucinda), Física e Química e regras sosiais por estranho que isso hoje pareça "baixe lá as mangas da bata, menina... não vai lavar a loiça!!" "menos é mais" (Drª Teresa Coimbra), ensinaram-me também ser honesta, verdadeira, exigente, a lutar por estudar mais e mais e a gostar de o fazer. A minha Mãe, essa, para além de tudo isto também, ensinou-me a ser mulher, mãe, corajosa, solidária, amiga, companheira! "Vamos lá, dizia ela. Tem de ser e o que tem de ser tem muita força" E lá ia mais um pouco de óleo de fígado de bacalhau seguido de um gomo de laranja!
Lembrei-me, por sua causa, da escola primária! Não básica! Que é hoje um pequeno Quartel dos Bombeiros. A minha Mãe partiu! E fiquei menos corajosa, menos lutadora, mais assustada, mais adulta, menos feliz!
As minhas professoras ainda aqui estão. E ainda as ouço a incentivarem-me a ir em frente, seja lá no que for. Grande escola, a minha Escola Primária! Não básica!
E porque hoje é o Dia do Pai, tb recordar esse homem, aparentemente mais exigente e mais duro... mas só aparentemente, como era uso desse tempo, Que me deu a minha 1ª caneta de tinta permanente e que, pegando-me ao colo, me explicou ternamente, que o exame de admissão não era assim coisa de me ter tanto medo!!! "Vais gostar de estudar mais, verás!" E lá fui de novo, à tarde, para a Escola Primária. Não básica!
Aqui fica a minha homenagem a toda(o)s professoras(es) que passaram pela minha vida... e ainda vão passando. Era boa a minha Escola Primária! Não básica!
Obrigada Sr. Luís Fernandes!
Muito obrigada, "Gaivota em terra". Eu é que lhe agradeço o ter passado por aqui. Bem-haja.
Abraço.
Luís Fernandes
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