Ontem a Rua Ferreira Borges foi
palco de um acontecimento que, embora comece a ser vulgar, nos deve fazer
pensar. Para além da vergonha que a demandada deveria ter experimentado –se é
que sentiria mesmo, mas isso é outra questão-, tratou-se de um despejo
comercial onde, como é hábito, se gera algum aparato pela permanência de um ou
mais agentes da PSP.
À primeira impressão, até podemos
pensar que, ao longo da nossa história recente, sempre houve e haverá
inquilinos que não satisfazem o compromisso contratual com a outra parte, neste
caso o senhorio, e, portanto, literalmente interrogamos: “e o que tem este
facto de extraordinário?”
Antes de ir directamente à
resposta, vou divagar um pouco. Sem me armar em moralista subjectivo –porque também
não vale a pena já que você não acreditaria- e, neste caso é o que importa, alocando
o princípio da boa fé, enquanto conceito jurídico e em sentido objectivo, geral,
a regra da boa conduta, em que os contraentes devem agir de modo honesto,
correcto e leal deve estar sempre presente nos negócios. Especulando, já vi que
você está a arranhar na cabeça como a pensar: “mau, mau! Onde é que este
teórico quer conduzir a conversa? Então um contrato de arrendamento, celebrado
entre duas ou mais partes, para além de ser lícito, estabelecido em liberdade –um
propõe um preço e outro aceita-, livre de coacção, não pressupõe estar
envolvido no espírito da boa fé e imbuído de honestidade pela correcção e
lealdade dos entes?”.
Aparentemente assim é, mas só
mesmo na aparência. Antes de prosseguir, há uma premissa que devemos levar em
conta e, aos meus olhos, transforma este caso de ordinário para extraordinário:
segundo vizinhos, e já por aqui, pela Baixa, se constava, o valor acordado
entre inquilina e proprietário pela pequena loja era de 2800,00 euros mensais.
Volto a repetir que o contrato foi celebrado livremente entre as partes –claro que,
antes de avançar, deve-se clarificar que, no meu entendimento, este conceito de
“celebrado livremente” só se pode entender quando as fracções em oposição estão
num plano de equilíbrio relativo. Isto é, quando nenhum dos confrontantes, em
posição dominante, pode exercer uma postura de domínio absoluto sobre o outro.
Ou seja, aproveitando-se da fragilidade do outro, impõe a sua vontade. Relembro
que neste caso, como noutros, está em oposição um proprietário, abastado ou não
–embora a presunção de posse seja relevante e evidente em casos análogos- e um
pequeno comerciante que inevitavelmente, pelas circunstâncias, tem de trabalhar
para sobreviver, comer, pagar as suas contas e, mesmo mal, conseguir viver.
Para fundamentar melhor, mesmo
não percebendo nada de Economia Política –quando por lá andei fizeram o favor
de me chumbar, isto só para entenderem que daqui não sai grande coisa e estão
mesmo perante uma grande nódoa-, armado em grande intelectual, vou socorrer-me
do pensamento da Escola Clássica.
Segundo Malthus e Ricardo, primeiro quartel do século XIX, a definição de renda
era assim apresentada: “Renda é a parte do valor do produto total que resta
ao proprietário (arrendatário) após o pagamento de todas as despesas de
qualquer espécie correspondente ao cultivo, incluindo-se nestas despesas os
lucros do capital empregado, calculados segundo a taxa usual e comum dos lucros
do capital agrícola no período de tempo considerado”.
Isto quer dizer o quê? Tão-somente que a renda paga ao dono da coisa, terra ou
edificação, deve ser justa. E exemplificava assim: “Desse modo, se o produto total for unicamente igual ao valor das
despesas necessárias ao cultivo, não pode haver nem renda, nem lucro.”
Já agora, ainda dentro da Escola Clássica, vale a pena citar Adam
Smith acerca da teoria da renda: “Não é
por qualquer forma proporcional àquilo que o proprietário possa ter despendido
na respectiva beneficiação, ou ao valor que se lhe torna possível exigir; é-o,
sim, àquilo que o rendeiro tem possibilidade de pagar”
Passando para a Escola Marxista, terceiro quartel do
século XIX, é interessante ler o conceito que Marx fazia dos proprietários: “O proprietário de terras que era um
funcionário importante da produção no mundo antigo e na Idade Média é hoje,
dentro do mundo industrial, um aborto parasitário”. Qualquer semelhança
entre o conceito de Karl Marx e o caso que trago à colação, como se deve
calcular, é pura coincidência.
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