Para além da coluna "Passagens de encanto: o Largo da Freiria", deixo também os meus textos "Rostos Nossos (Des)conhecidos: O homem colorido", "A vil falta de frontalidade" e "Reflexão: a Baixa debilitada".
PASSAGENS DE ENCANTO: O LARGO DA FREIRIA (2)
Continuando a descrever, em
resenha histórica, recantos da nossa memória urbana, no caso o Largo da
Freiria, por cima do agora Snack-bar Padaria Popular do Sérgio Ferreira, no
número 12, 2º andar, há cerca de 15 anos, está a Isabel Pereira. A quem quiser
enriquecer o seu conhecimento, com muita entrega a esta causa e muita simpatia,
ensina artes decorativas e bordados. Para além de transmitir o seu conhecimento
também aceita encomendas e faz fatos para adereços de teatro.
Na porta ao lado, com uma entrada
exclusiva, era o Sporting Nacional, uma agremiação desportiva de grandes
sucessos no atletismo, a partir de 1919, nesta parte velha da cidade. Era
composto por um grande salão de baile que ia até à Rua Visconde da Luz. Nesta
altura de meados de 1980 era já apenas um resquício historial do grande clube.
Vinte anos antes, num negócio mal esclarecido e que a maioria dos sócios não
entendeu, o grande salão de baile foi cedido a um grande banco nacional. A
histórica coletividade ficou apenas reduzida a duas pequenas salas de cerca de
vinte metros quadrados cada. Hoje, por incúria, por desrespeito perante um
passado incomensurável de memória, dois ou três associados não restituem a
chave para que se salve o espólio e a cidade, detentora e garante da
recordação, possa continuar a usufruir de retalhos que, por direito próprio,
fazem parte intrínseca do seu historial de um tempo difícil para os desportos
amadores. O património desta outrora grande associação de atletismo e outros
desportos jaz entregue às águas das chuvas, e ervas daninhas, que se encarregam
de destruir o pouco que muitos, durante décadas, construíram. Haja respeito
pela cultura do povo!
Fazendo a inversão de marcha, seguindo,
agora do lado direito, em direção à Rua Eduardo Coelho, encontramos um
lindíssimo edifício em péssimo estado de conservação, desprezado, e com obras
iniciadas há cerca de cinco anos. Como monumento à incúria e incapacidade do
homem, é um atentado à segurança do largo. Com obras iniciadas há cerca de
cinco anos, sem miolo interior, este prédio, em apelo pungente de sofrimento,
pede que olhem para a sua situação calamitosa. Numa das bandeiras, em ferro
forjado, arte ancestral e tão identificativa da cidade e que tão grandes
mestres produziram, de uma porta, pode ler-se: 1878. No piso térreo foi um
grande estabelecimento de mercearias, café moído e vinhos até princípio de
1960. Nessa altura, ao que parece, encerrou para nunca mais reabrir. Hoje, como
amostragem do desleixo, privado e público, todo o edifício jaz abandonado à
sorte do tempo.
Logo a seguir, por esta época de
1980, numa entrada de prédio, com o número 19, estava o senhor Guerra a vender
tudo o que era rádio, cassete pirata, relógios, pilhas, e outros acessórios
ligados a música. Hoje, mostrando que tudo volta à sua origem, é simplesmente
um acesso ao prédio e nada mais.
Dando um passo para a direita era
o estabelecimento de pronto-a-vestir Topal. Quem espreitasse através das várias
montras de vidro, para além do senhor Paulo, o proprietário, poderia ver-se a
atender vários clientes a Lucinda, a Isabel e o Carlos -este último viria a
arrendar o estabelecimento ao patrão e, durante uma década, manteve-se ao leme
deste barco comercial. Com os ventos de crise que assolou o comércio
tradicional, com o negócio sempre em queda, este homem, marinheiro garboso e
habituado à borrasca, às intempéries, com esta viagem, alegadamente e tal como
outros marinheiros comerciantes, viria a sair muito mal economicamente desta
jornada. Nem sequer teve direito a subsídio de desemprego –aliás, sorte igual a
todos os comerciantes que tenham o azar de cair nas malhas da miséria. Uma
iniquidade, uma discriminação incompreensível num país que tanto fala em
justiça e ajuda aos mais necessitados. Hoje a antiga Topal, e depois de vários
anos ocupada pelas Modas Veiga, como campa rasa em cemitério de solidão,
ostenta há vários meses uma placa: “arrenda-se”.
Em resumo, o Largo da Freiria, em
relação aos anos de 1980, tem três estabelecimentos encerrados, um que se
extinguiu, um edifício e uma sociedade desportiva em estado de coma a gritarem
bem alto: “OLHEM PARA NÓS! SALVEM-NOS!”
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS
“O HOMEM COLORIDO”
Todos sabemos, as cidades, na sua
diversidade, são uma galeria de arte vária. A maioria de nós não se apercebe
das diferenças que subsistem entre os seus elementos. Talvez porque, por um
lado, estamos inteiramente afundados nas pessoais preocupações financeiras, e,
por outro, pela acultura que destrói a sensibilidade individual, sem querer,
acabamos por olhar para tudo e todos como fazendo parte da mesma massificação.
Às vezes, temos um quadro vivo,
em expressão surrealista, mesmo à nossa frente e é apenas mais um entre os
demais. Há várias razões, mas destaco apenas uma, que nas últimas décadas tem
caído no esquecimento: a educação para a arte. Ou seja, a partir da escola
básica dever-se-ia incutir nos jovens o despertar mágico da sensibilidade para
a faculdade de ver para além do comum. Porque, afinal, se nos pedirem para
descrever a arte, aposto, não é fácil. No meu conceito, direi que a arte é toda
a manifestação viva ou inativa que toca os nossos sentidos. O que quer dizer
que, mesmo na morte, e desde que seja tratada como tal, esta, pode ser uma
exteriorização de cultura e arte.
E escrevi este longo prólogo para
apresentar o “homem da bicicleta às cores”. Já há umas semanas passei por ele
na Ponte de Santa Clara e achei que estava perante um raro quadro urbano ou
suburbano de cultura viva. Ao olhar para esta ambiguidade de homem/bicicleta,
senti o mesmo que olhar para uma pintura surrealista de Salvador Dali.
É o Celso Fonseca e mora ali para
os lados de Assafarge, nos arredores de Coimbra. Foi com alguma desconfiança
que me deixou fotografar. Enquanto lhe dizia que era para o jornal, e que, na
sua postura de homem/máquina, siameses colados entre o humano e a mecânica, o
considerava um quadro digno de nota na paisagem urbana corriqueira e quase
sempre igual, um pouco com palavras arrancadas a saca-rolhas, lá me foi dizendo
que optou por pintar a sua “companheira” de cores vivas porque gostava muito.
“Fui eu mesmo que a pintei!”, foi-me dizendo, como se estivesse orgulhoso da
sua obra de arte, mas ao mesmo tempo sem me dar muita confiança. Afinal é assim
mesmo. Artista não liga a “paparazi”. Deu para perceber uma qualquer disfunção
na sua personalidade. Mas também quantos de nós, psiquicamente, seremos completamente
funcionais? Mesmo preenchendo o requisito de normalidade, este valor andará
sempre a balouçar numa grande imprecisão de relatividade, quer pelo meio, quer
pela vontade, na resistência ao estandardizado, do próprio indivíduo.
A VIL FALTA DE FRONTALIDADE
Um prédio na Baixa, que mostro na
foto, mas que intencionalmente não identifico, apareceu na semana passada
grafitado. Não é um ato isolado. Não é a primeira vez que acontece. Em 26 de
Novembro de 2009, neste mesmo edifício, desconhecidos conspurcaram as pedras da
frontaria com óleo queimado.
Não é por acaso que não apresento
as coordenadas deste acontecimento. É que não devemos dar publicidade aos
frouxos. Se o perdão é o mais nobre sentimento de todas as virtudes da humanidade,
em antítese, a cobardia é o mais vil, o mais desprezível, o mais repelente que
pode povoar o mundo das pessoas ditas racionais.
Por muitas razões que tenham os
indivíduos que fazem isto a coberto da noite, nada, seja lá o que for, lhes
pode assistir o direito de agir assim. Há instrumentos legais que poderemos
sempre utilizar para fazer valer a nossa razão. Nada justifica um facto
desprezível como este. Porque, atente-se, este conspurcado não foi realizado
por um qualquer vândalo da noite, sem eira nem beira. Pelos antecedentes, está
de ver, foi feito por pessoas com vida organizada, com família, com mulher e
filhos e que, a estes, em discursos vazios à mesa do jantar, até dizem: “meus
filhos não podemos querer para os outros o que não gostamos para nós!”
Deixo este texto para reflexão e
para que todas as pessoas de bem repudiem esta forma de estar na vida de
alguns. Por outro lado, se quem fez isto, eventualmente, ler este texto, se
lembre que lhe pode acontecer o mesmo.
Bertold Brecht (1898-1956)
"Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata.
Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista.
Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu.
Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse"
Martin Niemöller, 1933
símbolo da resistência aos nazis
Primeiro eles roubaram nos sinais, mas não fui eu a vítima,
Depois incendiaram os ônibus, mas eu não estava neles,
Depois fecharam ruas, onde não moro;
Fecharam então o portão da favela, que não habito;
Em seguida arrastaram até a morte uma criança, que não era meu filho...
"Quando os nazistas levaram os comunistas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata.
Quando eles levaram os sindicalistas, eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista.
Quando levaram os judeus, eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu.
Quando eles me levaram, não havia mais quem protestasse"
Martin Niemöller, 1933
símbolo da resistência aos nazis
Primeiro eles roubaram nos sinais, mas não fui eu a vítima,
Depois incendiaram os ônibus, mas eu não estava neles,
Depois fecharam ruas, onde não moro;
Fecharam então o portão da favela, que não habito;
Em seguida arrastaram até a morte uma criança, que não era meu filho...
REFLEXÃO: A BAIXA DEBILITADA
Há poucas semanas, contrariando
uma pacatez natural, um homem morreu numa rua da Baixa. Nesta última semana,
durante a noite de sexta para sábado, alegadamente, alguém foi brutalmente
espancado. Como testemunha da violência gratuita, uma enorme mancha de sangue
mostrava a brutalidade. Não se sabe o que aconteceu. Apesar dos audíveis gritos
da vítima e dos agressores, os vizinhos não viram nem ouviram nada. Nesse mesmo
sábado, e a poucos metros do mesmo local, um comerciante de 79 anos foi
agredido e mandado ao chão junto ao seu estabelecimento.
Não quero dizer com isto que estejamos
num quadro de força sem controlo. Nada disso! Gostaria antes de chamar atenção
que, devido a premissas várias, a Baixa está muito vulnerável e, perante a
força da criminalidade, é como um bebé perante um adulto.
1 comentário:
Artigo do Expresso:
Ui, ui, o comércio tradicional
Por norma, Coimbra tem um número considerável de turistas, que andam por ali a ver o túmulo de D. Afonso Henriques e demais memória da cidade. Mas, naquele sábado, a cidade estava ainda mais cheia, estava mesmo apinhada de gente de pele clarinha e de carteira cheiinha. O Eurogym 2012 tinha acabado de começar. Ou seja, milhares de Nadias Comaneci loiras enchiam as ruas. Perante esta avalanche do norte da Europa, poderíamos pensar que o comércio tradicional de Coimbra iria ficar satisfeito. As ruas estavam cheias de malta com a carteira fora da alçada da troika; aliás, num certo sentido, era a troika que ali estava, a andar de um lado para o outro. Sucede, porém, que esta suposição estaria errada.
Naquele sábado fervilhante, a maioria das lojas da baixa estava fechada. Pelas bandas de Coimbra, a lógica pode ser uma coisa do Entroncamento. Enquanto me encaminhava para uma loja que vende sapatilhas Sanjo e música alternativa, não pude deixar de pensar que estes comerciantes têm excesso de queixinhas e défice de adaptação. Falam muito, mas depois são incapazes de aproveitar um evento que trouxe milhares de carteiras para o centro de Coimbra. Pior: estes comerciantes serão os mesmos que aparecerão algures numa futura reportagem de TV, queixando-se do iva e da pressão das grandes superfícies. Felizmente, a minha loja estava aberta, e comprei o meu CD. A rapariga da loja não se queixou da pressão das grandes superfícies, apenas resolveu trabalhar num sábado à tarde numa cidade cheia de turistas ricos. Quem diria?
fonte: http://expresso.sapo.pt/ui-ui-o-comercio-tradicional=f741459#ixzz21qbfXCt7
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