sábado, 1 de maio de 2010

O VELHO CAFÉ DO TEATRO AVENIDA

(FOTOS DO INTERIOR DO VELHO CAFÉ COM O "TAXEIRA" A POSAR PARA O FOTÓGRAFO)


  "Chamo-me Lurdes Almeida. Em 1954, tinha eu então 18 anos, fui trabalhar para o café do Teatro Avenida, em Coimbra. Havia pouco tempo que fora tomado de trespasse pelos meus pais. A minha mãe, Preciosa, era padeira na padaria “Bijou”, na Avenida Sá da Bandeira, quase em frente ao velho animatógrafo.
 Foi tudo um acaso. Quem abriu o café foi o Abraão da Cruz, que era o projector da velha casa de espectáculos, desaparecida no início da década de 1980. Não sei se se lembra dele… andava sempre com um periquito no ombro. Então foi tudo uma sucessão de acontecimentos. Como a minha mãe distribuía o pão de porta-em-porta na cidade, naturalmente, tinha muitos calotes. Como as pessoas ganhavam mal ela ia fiando. Um dos relapsos era o Abraão, que já lhe devia à volta de 20 contos. O negócio do café estava a correr-lhe mal. Estava afogado em dívidas. Já se tentara matar uma vez, mas como era muito gordo e a corda era fina, esta, para sorte dele ou não, rebentara.
 Então, um dia, chegou ao pé da minha mãe e disse-lhe que ela tinha de ficar com o café. Era a única forma de lhe pagar os 20 contos. A minha progenitora, que não percebia nada de hotelaria, ainda tentou resistir ao negócio, mas o Abraão foi taxativo: “se não negociares comigo mato-me”! É claro que a minha mãezinha ficou dividida. Se aceitasse o negócio, por um lado, seria ressarcida e, por outro, também evitaria uma possível tragédia. Sabe-se lá se, desta vez, o experimentador de suicídios não escolheria uma grossa corda?
Então, para não ficarem com a consciência pesada, os meus pais fizeram negócio com o Abraão. Embora já houvesse um compromisso com o “Pinto de Ouro”, que foi entretanto para Santa Clara, logo a seguir à ponte de ferro, que ligava as duas margens, um pouco à frente da “Casa da Ponte”.
A renda do estabelecimento era paga à família Mendes de Abreu.
O café estava uma vergonha. Parecia uma tasca. O lixo chegava ao tecto. Os meus pais limparam tudo, pintaram, fizeram uma renovação completa. Como eu estava desempregada e o meu irmão “Zé” Lopes, que era electricista de automóveis, também, fomos os dois trabalhar para o café, juntamente com os meus pais. Mais tarde o meu irmão “Zé” arranjou emprego na “Guerin” e foi para lá como electricista. Fiquei então ao leme do velho e querido estabelecimento, embora fosse assessorada pelos meus pais.
 Passados dois anos, tinha eu então 20, vim a conhecer o meu marido. Era um espectáculo de homem. Só queria que visse. Era muito culto. Gostava muito de cinema, de fado, de revista e de tudo o que se relacionasse com a cultura. Passados sete meses de nos conhecermos casámos na igreja de São José. Não foi nesta nova… foi na outra velha. Depois de casada eu continuei a trabalhar no café.
 Aquele ambiente era espectacular. Sabe lá! Eram tempos miseráveis, a gente sabe, mas eram outros tempos. Tenho muita saudade! Era muito frequentado por estudantes. Quando havia as trupes, os rapazes das capas e batinas chegavam a dormir lá de noite em cima das trouxas de roupa suja para não serem rapados. Quando saíam logo de manhã, depois de abrirmos o café, era uma dor de alma verificar que a trupe estava cá fora à sua espera. Tinham passado a noite ao relento para estarem à coca deles. Acabavam por os apanhar e “davam-lhes nas unhas”. Estas trupes eram constituídas por um grupo de três ou cinco estudantes já veteranos.
Qualquer universitário podia pedir ajuda. Bastava que um qualquer futrica –não estudante- lhe pusesse um braço sobre o ombro para o rapaz das sebentas ficar imediatamente protegido e não ser rapado. Aquilo era uma violência, você sabe lá? E quando a Académica perdia? Só podiam ser protegidos por familiares. Era a chamada “protecção de sangue”.
 Em frente ao café do Teatro Avenida, do outro lado da Avenida Sá da Bandeira, havia uma casa de estudantes. Então estava lá um sobrinho daquele médico –ai!, como é que se chamava?- que fez um aborto e foi denunciado por uma enfermeira… não está a ver quem era? Bem, agora não me lembro, mas não interessa nada! Sei que o pobre clínico, que era uma alma generosa, por causa do aborto, foi deportado por Salazar para África. Então, por causa disso, o sobrinho era vilmente perseguido pelas trupes. Coitadinho! Tantas vezes o protegi. Até diziam que a Lurdes do Avenida era a sua madrinha.
Lembro-me de tantos actores e actrizes que passaram no velho teatro Avenida. Recordo-me do Henrique Santana, da Laura Alves, do Camilo Oliveira, do Raul Solnado, do Humberto Madeira, da Simone de Oliveira –e até daquela fase em que ela perdeu a voz-, da Hermínia Silva, do Vasco Morgado, do António Calvário... ai este, coitado! No fim do espectáculo, sempre que ele vinha a Coimbra, os estudantes queriam bater-lhe. Como ele se apresentava no palco de camisas aos folhos, rendinhas e de lacinho às bolinhas. Esperavam-no cá fora e, aos gritos, “paneleiro”, vai para Lisboa", não paravam de o apupar. Os futuros doutores eram maus. Eram peste! Pobre homem! Às vezes tinha de sair por uma porta lateral. Eu conheci essa gente toda. Era a minha mãe que fazia o jantar para esses artistas todos.
 Até o “Taxeira” –Raul dos Reis Carvalheira, que viu o seu nome ser perpetuado numa rua da cidade-, que era uma figura típica de Coimbra, andava a vender o “Ardina”. Chegava ao pé dos estudantes e, na sua voz cavernosa, dizia: “moedinha, ó sócio!”. Era uma figura assídua do café. Sempre que ouço falar dele ou vejo a sua fotografia, sou transportada numa longa viagem temporal. Fico sem palavras para aquela imagem. Só me apetece chorar.
 Lembro-me, em 1969, da crise académica. Um GNR, um Guarda Nacional Republicano, muito corpulento, de voz abrutalhada, ordenou-me: “tem de fechar imediatamente. A partir de agora não se sabe o que pode acontecer”. Mas eu mantive o meu café aberto, escondi alguns estudantes da polícia e não aconteceu nada.
 Estive 26 anos no café do Teatro Avenida, em Coimbra. Por volta de 1980, passados poucos anos a seguir ao 25 de Abril, fui chamada por um senhor que trabalhava num banco –que já não me lembro do nome. Disse-me que eu tinha de abandonar o café porque o velho teatro iria entrar em obras. Argumentei que os meus pais tinham pago trespasse, mas ele invocou que não podia ser. Aquele café só estava concessionado. Mostrei-lhe o papel, ele pegou-lhe, disse para o deixar e nunca mais mo entregou. Cheguei a ir falar com a Dona Judite Mendes de Abreu, mas ela também corroborou que o café estava apenas concessionado e, portanto, teríamos mesmo de sair. Olhe, saímos com uma mão à frente e outra atrás. Entretanto foi tudo demolido e o novo projecto deu lugar a um grande centro comercial. Do meu querido café, do amor da minha mocidade, nem uma pedra restou. 
Ainda hoje evito passar lá. Começo logo a chorar. É como se os fantasmas da minha memória, em fluidos, saíssem disparados daquele espaço e me viessem atormentar. Ai que saudade, meu Deus!"


*TEXTO ESCRITO PARA A "FÁBRICA DE HISTÓRIAS" SOB O MOTE "PALAVRAS PARA UM A IMAGEM".
http://fabricadehistorias.blogs.sapo.pt/47477.html

1 comentário:

Sónia da Veiga disse...

Quem me dera ter assim memórias tão ricas e inspiradoras...

E sai um café com leite, por favor.
Nata não, que estou de dieta! ;)