Faltariam ainda uns minutos para as nove horas. Mal estava eu a pendurar a albarda no cabide comunitário cá na redacção do Questões quando o telefone preto do século passado retiniu histérico como mulher a parir um filho. Mentalmente, lembrei-me de um velho professor da escola Sidónio Pais e pensei com os meus botões: “toca, toca, levemente, como quem chama por mim, gente não é certamente, só anónimos fazem um chinfrim destes assim!”.
Levantei o auscultador. Do outro lado uma voz ofegante, feminina, como se fosse uma metralhadora, varreu o éter: “é para dizer que os plátanos da Avenida, que estão a ser abatidos, foram assassinados pelo Metro de Superfície!”. E pumba! Desliga o telefone.
Fosca-se! Isto já começa a chatiar! Então, mas agora é todos os dias, ó quê? Será que esta gente não consegue dar a cara para nada? Que diabo, ao menos poderia falar pessoalmente comigo, que sou o director, ou falavam com o chefe de redacção, ou até no limite, poderíamos sintonizar o nosso satélite e o denunciante falava para o céu. Mas qual quê? Este pessoal gosta é de atirar furtivamente. E isto, para nós, que gostamos de apresentar um bom trabalho é terrível, porque, praticamente, temos de partir do zero na investigação. Por acaso, está cá o “Olho de Lince”, o nosso fotógrafo, mas poderia não estar. Aliás, amanhã já estará de partida para a Coreia do Norte. Ainda estamos à espera da autorização de King Jong–II, mas, como é meu amigo, andámos os dois na tropa em Estremoz, é mais que evidente que vai autorizar a entrada do nosso grande líder nacional na fotografia em Pyongyang.
Há coisas do arco-da-velha, por acaso, já tencionava pegar neste assunto. Desde o dia 20 deste mês, quando o Diário as Beiras noticiou em primeira página o abate do “platanal”, que andava com isto na ideia. E até há coisas do “camano”, ontem liguei ao nosso correspondente biólogo, o Albino “Folha Seca”, suponho que não conhecem, mas ele deve estar a aparecer por aí e já o apresento. Olhe, engraçado, está a bater no vidro do meu gabinete. É ele mesmo. É assim um bocadito para o “parvóide”, mas nem é mau tipo. Parece o Peter Falk, o “Colombo” da televisão, de há uns anos, lembram-se? Pois quando olho para o “Folha Seca” é como se estivesse a ver o grande detective. É igualzinho, seja ceguinho se não é verdade! É estrábico, anda sempre com o mesmo fato cinzento, que deita cá um pivete que até arrepia, tem assim o cabelo preto, meio empastado, penteado para trás e, olhando para os seus sapatos, é uma miséria de mau aspecto. Se, ao menos, os engraxasse, ainda vá lá! –nunca se esqueçam que o poder económico de uma pessoa antevê-se facilmente olhando para as alpercatas. Não sabiam, pois não? Mas por alguma razão você é leitor deste jornaleco. Se não viesse aqui aprender nada não vinha cá. Não precisa de agradecer, homessa! Aliás, já que estou na onda, ainda lhe vou dizer mais: sabe onde é que se vê se um restaurante é limpo? Pois, não imagina…é na casa-de-banho. É isso mesmo, sempre que entrar num restaurante novo, que não conhece, se quiser saber acerca da limpeza existente, primeiro vá à retrete. Se esta estiver limpa, com papel higiénico e líquido lava-mãos tudo no sítio, pode comer ali à vontade, no restaurante, é claro. É uma casa boa para albardar.
Bolas, com a conversa, até me esqueci do Albino “Folha Seca”, que está para ali farto de bater no vidro. Vou abrir. Só um momento. Volto já! Não desliguem, se fazem favor!
Ora cá está, apresento-vos o “Folha Seca”. Albino, cumprimenta o senhor leitor. Vá lá, que é ele que te paga o vencimento do recibo verde.
-B’tarde!
-Quê? “B’tarde”? Olha lá ó “Folha Seca”, que merda é esta? Estás a comer as palavras porquê? Pensas que lá por seres doutor te podes escusar a cumprimentar os nossos clientes, é? Ó pá! Fico fulo com essa mania, pá! Fazes o favor de cumprimentares os senhores como deve ser, ou chateio-me?
-Boa tarde, senhor leitor!
-Ah…assim está bem! –às vezes tenho mesmo de me “entesoar” com estes gajos! Lá por serem doutores, pensam que não devem respeito ao seu semelhante. Enerva-me, pronto! Desculpem lá este aparte, que às vezes até me passo…palavra de honra!
Vou então enviar à Avenida Emídio Navarro o botânico “Folha Seca” para me fazer um relatório minucioso do abate dos plátanos, e o nosso grande fotógrafo, premiado internacionalmente, o “Olho de Lince”.
Não é que faça grande fé na chamada anónima, mas lembro que estava programada a passagem do Metro de Superfície exactamente por aquele local. Que é suspeito, lá isso é! E de tal modo assim é que até hoje, no Diário de Coimbra, vem o biólogo Jorge Paiva a dizer precisamente a mesma coisa. E até diz mais: "Os plátanos deviam estar sob stress mas isto é esquisito ser tantos plátanos e logo ao mesmo tempo (...)".
Mas nós aqui, no Questões, não nos guiamos na vida por convicções, mas sim por factos, por provas. O nosso director –que por acaso sou eu- descende de uma linhagem genealógica jurisprudencial de grandes vultos do direito. Isto desde o Renascimento. Portanto, certamente já viram que não alinhamosem intuições. Ou é ou não é! Ou, no limite, pode nem ser uma coisa nem outra. Ou se prova ou nada feito.
Mas nós aqui, no Questões, não nos guiamos na vida por convicções, mas sim por factos, por provas. O nosso director –que por acaso sou eu- descende de uma linhagem genealógica jurisprudencial de grandes vultos do direito. Isto desde o Renascimento. Portanto, certamente já viram que não alinhamos
Vamos então enviar o nosso fotojornalista ao local do crime –como quem diz- e o nosso biólogo de serviço, Albino “Folha Seca”.
UM SERIAL KILLER NO PLATANAL
(“Olho de Lince e “Folha Seca” em serviço)
Chegámos então à avenida, mesmo em frente ao Parque da Cidade Manuel Braga. Enquanto o Albino faz trabalho biológico de investigação, vou tirar umas fotos aos mortos. Como quem diz, aos plátanos em estado vegetativo. Se tiver sorte –porque nunca se sabe, a sorte protege os audazes- até pode ser que consiga entrar em falas com o fungo assassino. Segundo o que dizem os jornais cá da aldeia, as árvores, agora mortas, estavam em grande stress traumático, devido à iminência de virem a ser abatidas por causa das obras do carril. Mas aqui, embora não se falasse nos dois diários, dá para ver a olho nu que estamos perante uma grosseira negligência da autarquia de Coimbra. Eu explico melhor, porque é natural que você não acompanhe a minha pedalada. Modéstia à parte, mas como sou muito viajado pelo mundo inteiro, tornei-me muito mais inteligente que qualquer mortal comum. Depois desta ressalva, vamos lá então às questões processuais. Já sabemos que as árvores estavam em stress, certo? Ora é aqui que já começo a desconfiar da câmara. Porque não levou a autarquia as árvores a uma consulta de psicologia ou psiquiatria? Estranho…é ou não é? Ah, pois é! E não venham cá com desculpas que os plátanos estavam muito doentes e não se poderiam deslocar. O tanas! A trinta metros desta desgraça ambiental está o consultório de um dos maiores psiquiatras de Coimbra: Francisco Allen Gomes. Mesmo antes das conclusões do “Folha Seca”, por aqui já se vê que há marosca. Se estivessem interessados em colmatar a ansiedade arbórea tinham pedido uns ansiolíticos ao especialista. É ou não é? Pois é! Isso vi eu logo!
Mas, já que tirei as fotos, vou falar com o Albino, para ver se já tem algum resultado epidemiológico. Estou a vê-lo ao microscópio. Vou aproximar-me.
-Então, “folha Seca”, diz lá qualquer coisa para os nossos leitores. Já detectaste o fungo assassino?
-Para dizer a verdade, ainda não apanhei o fungo, mas uma coisa posso garantir: ele está entre nós! Eu pressinto os seus olhos cravados em mim. Esse cabrão está gozar connosco…isso tenho a certeza!...
-Mas diz-me, “Folha Seca”, os plátanos morreram mesmo ou ainda estão em morte clínica? É que isso é importante, não sei se estás a ver…
-Claro que estou, Ó “Olho de Lince”. Achas que sou estúpido, é? Ó pá, eu sou licenciado pela Universidade de Coimbra! Eu sou mesmo licenciado…”tás” a ver?...
-Claro, desculpa lá, ó Albino. Mas responde lá acerca do estado de saúde das árvores…
-O que te posso garantir é que estes plátanos morreram de morte. Estão secos como os tomates do meu avô Isidoro quando tinha noventa anos. Isso é a única coisa que posso garantir. Quanto ao resto não posso dizer nada…
1 comentário:
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pqp
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