segunda-feira, 24 de maio de 2010

O CONTO DA SEMANA...

(IMAGEM DA WEB)


A VIRGEM DE TRÊS VINTÉNS


Mesmo antes de ela transpor a porta da loja, por qualquer motivo, não sei bem qual, os meus olhos já a analisavam. Era uma mulher esbelta. Cabelo curto alourado, bem cuidado, a servir de moldura a um rosto bem retocado com base bege, que lhe dava um aspecto de boneca de cera. As sobrancelhas estavam bem sublinhadas a lápis negro. Os lábios, numa cor alaranjada, pareciam renascer naquela carinha fina.
O corpo era de modelo. Uns seios pequeninos, quase sumidos, alegravam um tronco, quase só para mostrar que era mesmo feminino. Usava umas calças claras, cor de caqui. Uns sapatos, tipo mocassim, tapavam um pé pequenino, talvez de bailarina. O seu passo era ondulante, a cair na volúpia, mas seguro. Trazia consigo um pequeno saco plástico, com algo lá dentro.
-Bom dia! O senhor está a comprar alguma coisa? Interroga-me.
-Bom, verdadeiramente, não estou mesmo! Isto está muito difícil! Respondi.
-A quem o diz, menino! Mas tem mesmo a certeza que não quer comprar?...Talvez ao menos olhando a peça…não? Que me diz? É que me custa tanto vendê-la! Era da minha mãezinha…deve ter, à vontade, cerca de oitenta anos –ao mesmo tempo, abre o saco. Lá dentro está uma pequena colcha de seda, cor-de-rosa, em mau estado de conservação. Nem foi preciso mexer-lhe para ver que não tinha qualquer valor comercial.
-Então, e por que quer vender? Se é uma peça de valor estimativo? A emoção e a recordação não têm preço, interroguei em jeito de provocação.
-Pois, mas que quer? A reforma só chega lá para o dia 16…quantos são hoje?
-24, respondi.
-Pois, ainda falta um bocadito e não tenho dinheiro nenhum. Nem para comer.
-Então, mas já gastou a reforma que recebeu há oito dias? Interroguei.
-Ó menino, você sabe lá? Aquilo gasta-se que é um instante! São uns contitos, é pouco. Mal dá para comer!
-Se calhar a senhora também não se administra bem. Provoquei.
-Qual quê, menino! Aquilo é uma miséria. Vai-se por entre os dedos.
-Olhe, eu não lhe posso comprar a colcha, mas se tem fome, posso ajudar a tratar disso. Dei-lhe umas moedas.
Com esta importância a senhora já pode ir almoçar hoje à Cozinha Económica. E para amanhã, se quiser, venha ter aqui comigo, logo às nove da manhã, que eu vou com a senhora à Segurança Social. E lá elaboram um processo e ajudam-na, de modo a não passar fome.
Que idade tem a senhora?
-82 anos! Respondeu.
-Então, faça assim: amanhã venha cá ter comigo, e vamos lá tratar disso.
Devido à sua idade, sabe que pode ter um Complemento Solidário para Idosos? Já tratou disso? Sabe o que é? Interroguei.
Não sei. Há uns tempos preenchi uns papéis…se calhar foi isso!
-Não se preocupe, se quiser, vamos à emergência social e lá vêem se já tratou ou não. Para além disso, certamente, dão-lhe a possibilidade de ir comer diariamente à Cozinha Económica…
-À Cozinha Económica? Nem pense! Dizem que o comer não presta…que põem corantes na comida…
-Ai sim? A senhora conhece aquele aforismo de que “a cavalo dado não se olha o dente”?
-Bem…isso é verdade! Mas eu tenho vergonha de ir comer à Cozinha Económica. É isto mesmo! Já viu, quem me conhece, o que dirá se me lá vê? Eu fui uma pessoa que sempre vivi bem…
-Deixe lá esses complexos, contemporizei. Olhe que anda lá muita gente que já foi rica e agora vão lá comer diariamente. Venha ter comigo aqui lá para o meio-dia que eu vou lá consigo. Conheço lá várias pessoas e assim é mais fácil para se inserir…
-Ai, não sei não! Tenho vergonha! Prefiro ir ao Reis, ele fia-me e depois pago quando vier a reforma. Não me pode dar mais umas moedas?
Sabe, pode custar-lhe muito a entender, mas eu sempre vivi bem. Embora provenha de gente muito humilde, desde cedo comecei a trabalhar e sempre fui independente. Tenho uma casinha própria…sabe? Pois, ali, do outro lado do rio. O problema é não ter dinheiro nenhum!
Tive sorte, sabe? Eu tive um tio muito rico. Vivia em Lisboa. Como eu estava a pagar renda, um dia a senhoria comunicou-me que queria vender a casa. Era por pouco dinheiro. Era uma bagatela, já nem me lembro bem. Então, telefonei ao meu tio e disse-lhe que aquilo que era um bom negócio para ele. Resultado: no outro dia já estava cá em Coimbra para comprar a casita. Passou a ser o meu senhorio. Quando morreu, não sei há quantos anos, que não me lembro, deixou-ma de herança. Tive sorte, não tive? O problema é eu não ter dinheiro para nada. Precisava de lhe dar um arranjozito…mas deixe lá! Paciência!
Sabe que trabalhei muitos anos no Café Internacional? Lembra-se dele, ali ao pé da Estação-Nova? Já fechou há várias décadas. Já nem me lembro bem há quantas. Gostava muito de lá trabalhar. Ai, mas fizeram-me lá tantas! Os estudantes, sabe? Era uma malta danada! Um dia fizeram-me estar ao telefone, a tentar ligar para o senhor doutor Joaquim António de Aguiar, durante quatro horas. E primeiro que eu desse pela coisa? Olhe não dava pela marosca. Não dava mesmo! Até que alguém me avisou que o desgraçado do homem estava no pedestal da Portagem. Pois, mas que quer?, eu também sempre fui um bocado inocente. E eles falavam com tanta sinceridade. Lá ia eu adivinhar que era o homem que está na estátua do Largo da Portagem?
Ai mas eu tenho muitas saudades do café…ai se tenho! Eu vendia o que queria. Estava no balcão de pastelaria. Pode acreditar mesmo. Como sempre fui muito simpática, eu fazia o que queria do cliente. Pode crer! Com um sorrisinho e uma sugestão. Já estava. E então os homens? Ai que parvos, meu Deus!
 Eu tenho tantas histórias! Um dia chegou lá um grupo de espanholas e, naquela língua a cantar, disseram: “nós queremos homens com a coisa preta comprida!”. E primeiro que eu entendesse? Sabe o que é que elas queriam? Não sabe, pois não? Queriam ver estudantes de capa preta comprida.
Sabe que sempre, até hoje, permaneci solteira? E virgem! Ah pois! Sabe que um belo dia um homem meu conhecido colocou-me 60 contos –trezentos euros- na mão para eu lhe deixar tirar-me os três vinténs. Os homens são mesmo muito parvos, menino, sem ofensa –e coloca-me a sua mão aveludada na minha. Já viu o cabrão do homem? Pois lixou-se comigo: disse-lhe que colocasse os sessenta contos no pirilau e que lhe fizesse festas até ele se vir.
Raios partam o homem! Suponho que, pelo facto de eu ser filha de uma prostituta –a minha mãe era a Prazeres, tinha uma casa de meninas na Rua Direita, por volta dos anos de 1950. Lembra-se? Pois, se calhar não. O menino ainda é muito criança ao pé de mim. Pois, a minha mãe tinha lá várias raparigas. Que quer? Era a miséria desse tempo. Não havia trabalho! Depois o Salazar mandou encerrar todas as casas da Rua Direita e do Terreiro da Erva. Olhe, e valeu alguma coisa? Ora, ora! É impossível lutar contra a lei do desejo. Um homem para ter uma mulher, se preciso for, dá tudo. São uns “pasconços”, menino! Sem ofensa! –e coloca-me, mais uma vez, a mão em cima da minha, para se desculpar.
Sabe que trabalhei muitos anos na Farmácia Luciano e Matos? O dono gostava muito de mim. Nem lhe conto! Profissionalmente, é claro! Eu era muito aplicada no trabalho. Às vezes nem dormia a pensar em ideias lá para a farmácia. Um dia cheguei ao pé dele e disse: olhe lá, está a começar o inverno, porque é que não fazemos uma montra com borrachas para água quente? E ele disse: Faz! E eu fiz. Olhe, vendemos mais borrachas, nesse inverno, que nos últimos cinco anos.
 Ai, eu tenho tantas histórias para contar. Posso cá vir amanhã para lhe contar mais?

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