terça-feira, 5 de junho de 2018

BAIXA: HISTÓRIAS DE ENCANTAR NUMA TABERNA PORTUGUESA





Na pequena tasca, estabelecimento onde se serve vinho a copo e refeições ligeiras a baixo preço, de uma destas ruelas estreitas de encantar, se fossem anotadas todas as histórias que cada cliente transporta consigo sempre que transpõe a porta, estou em crer, dava um grosso livro de apontamentos onde antigamente se inscreviam os fiados nas desaparecidas mercearias.
Estes espaços tão pitorescos das cidades, que quase só por milagre poucos resistiram à ferocidade de uma purga evangelizadora contra a simplicidade, são casas de acolhimento social, são consultórios de psicologia, são boticas onde se vende o remédio para a solidão e o veneno para o fígado que encurta a existência de cada um, são colectividades abertas onde tanto entra e barafusta o abastado como o mais depauperado sem-abrigo.
Como por milagre, ali as barreiras societárias caem por terra e no meio de um copo-de-três o aparente felizardo pode chorar no ombro do mais infeliz do crepúsculo universal. Nesta verdadeira catedral dos direitos humanos, convive o preto, o branco, o amarelo e o vermelho -de rosto queimado pelos vapores etílicos- na paz de todos deuses. É provável que nestes centros comunitários haja um Deus feito à medida dos desgostos e outro para as alegrias e esperanças de cada um. Estas bodegas são paraísos terrenos onde, por troca de uma moeda pequena, facilmente se alcança o Olimpo.
Como ressalva não vou identificar este metafísico sítio de oração, isto porque os bons lugares sagrados não precisam de publicidade. Afinal, já não restam tantos assim e pelo bucolismo, pela curiosidade em entrar nos resquícios industriais de uma Baixa desaparecida, caminha-se na sua direcção como o azimute aponta o Norte.
Ocupa uma área de cerca de pouco mais de vinte metros quadrados tudo muito bem aproveitado milimetricamente. Num canto, junto à porta a manifestar as boas-vindas, o balcão corrido, com uma pequena vitrina com jaquimzinhos e pataniscas de bacalhau, onde o inox permanece como símbolo de sobrevivência de uma luta contra o legalismo obcecado de outros tempos, que foi assim por inépcia de governantes ignorantes, está o dono, de aspecto frágil mas cara fechada para defesa pessoal em campo de batalha. Lá dentro, um pipo erguido ao alto, como foguetão a fazer a ponte entre a terra e o infinito, parece dizer que quem provar aquele elixir da vida alcançará o descanso eterno. Na mesma linha, segue-se uma pequena cozinha. Nesta, a mestra cozinheira, como químico a fazer misturas no laboratório, faz milagres ao almoço e até ao entardecer. No recanto oposto uma pequena casa-de-banho tão limpa que faz cobiça a certos restaurantes de luxo da cidade e o restante espaço ocupado com meia dúzia de mesas. Na parede, em frente, como galeria de honra, vários pratos alegóricos com os emblemas pintados da Académica, do desaparecido União de Coimbra, do Benfica, do Sporting passam a prédica de que ali, naquele espaço de concórdia, cabem todos, com a sua clubite, desde que o respeito marque o tom. Ao lado, um pequeno quadro, com uma imagem de um maltrapilho com pau às costas com saco atado na ponta, prega a mensagem catequizadora e, mesmo que não seja levada à letra, serve de atalaia: “EU... também vendia fiado e fazia descontos.
É o homem de meia-idade, bem-vestido e bem calçado, que encosta ao balcão e soletra: “por favor, só preciso de um copo para acalmar a minha dor” -e com a mão aberta afaga uma barriga desenvolvida como se as entranhas sofressem pela demora e falassem por si.
É a mulher de cara bolachuda e pele avermelhada que, entrando sorrateiramente como se caminhasse por cima de algodão, encostando as amassadas mamas ao balcão, diz baixinho: “o habitual, se faz favor!
É o sujeito já de muito entrado nos “entas”, cujo rosto não engana pelos sulcos lavrados pelo tempo, viúvo, reformado e solitário de profissão, que, depois de já ter entornado dois copos no bucho para anestesiar e ganhar coragem, está agora com o terceiro em riste como se fosse D. Afonso de espada em punho contra a heresia e mete conversa com o grupo da mesa do lado.
Como tantas vezes repetidas ao longo das últimas décadas, há dias fui lá para almoçar. As poucas mesas estavam com as cadeiras todas ocupadas, excepto uma onde uma mulher de meia idade, de pele negra, talvez negra de Angola, almoçava sozinha. Magra, elegante, modelo mignon, de aparente fino trato, bem-vestida, unhas bem pintadas, com grossos anéis nos dedos e um relógio emoldurado de brilhantes de fantasia, com uma peruca preta, de cabelos esticados, conferiam-lhe um retrato de atriz de novela brasileira.
Acompanhado da minha mulher, encostei-me ao balcão à espera de uma mesa para aconchegar o estômago. De baixo para cima, como se me tirasse as medidas ou analisasse o material, olhando-me pausadamente como se fosse uma diva, de supetão atirou: “não querem sentar-se ao meu lado?
Sentamo-nos e escolhemos o prato do dia. E a musa, certamente com as palavras entaladas por não haver receptor disposto a ouvir a sua narrativa, começou o matraquear num diálogo em jeito de monólogo:
-Sabem? Eu também tenho um restaurante! É na Mealhada, junto à passagem de nível. Tenho 11 empregados, e todos ganham acima do ordenado mínimo...
Pela extrema convicção, fui partilhando a conversa. E até comecei por acreditar. Prosseguiu.
-Tenho também um restaurante em Londres. E ficam a saber que vou abrir proximamente outro cá em Coimbra, em Celas! Vão lá à inauguração, não vão?
Acabámos de almoçar e ao pagar a conta interroguei os donos da quitanda sobre as historias megalómanas da sua cliente.
Respondeu a proprietária: “se ela pagasse, ao menos, o que come aqui e não cravasse o calote já era uma mulher muito rica. Isso sim!

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