sábado, 23 de junho de 2018

EDITORIAL: SÓ DAMOS VALOR AO QUE CUSTA PAGAR







Na década de 1990, durante alguns anos, vendi em feiras de velharias. É mais que certo que não repetirei mas, do ponto de vista humano, foi uma experiência muito rica. Para além de travar conhecimento com imensos vendedores esforçados que vinham de vários pontos do país para ganharem uns cobres e fazerem face à sua vida difícil, conheci outros, tais como, professores, engenheiros, funcionários públicos cuja necessidade era meramente o contacto com os objetos antigos para aumentarem a sua colecção. Como se estivessem numa festa, frequentavam os certames como vendedores, mas compravam mais do que vendiam.
Enquanto andei por lá de terra em terra, deu também para apreender que o vendedor de velharias era sempre desprezado por todos, pelos colegas, pelos compradores e, sobretudo, pelas entidades camarárias que, como actores de um teatro cénico para alegrar o povo e revivificar o lugar, se serviam deles gratuitamente e cujo pagamento era a desconsideração contínua a raiar a humilhação. Resultado de um costume implacável, que sempre o colou o vendedor de arte ao “ferro velho”, poucos sabem e dão o valor que estas pessoas representam para a cultura nacional, para que esta não se perca nas amálgamas dos vazadouros. O vendedor de velharias é um carismático recuperador do passado e cuidador da memória colectiva. Encara o seu ofício como missão social. Mais, na maioria dos casos, o que o move são os sentidos da estética e da utilidade social e menos o interesse monetário que possa advir de um qualquer bem que se enamorou num primeiro olhar. Estas pessoas, bem ao género do “Livreiro de Cabul”, são generalistas e apaixonados pela arte em geral. Gostam de tudo o que seja diferente, desde que toque os seus sentidos, e fuja ao comum.

I
Vem esta longa introdução para melhor entender a desabrida e deselegante frase proferida hoje por Manuel Machado, presidente da Câmara Municipal de Coimbra (CMC), para um expositor que reclamava da transferência da Praça do Comércio, onde se realiza desde 1991, para o Terreiro da Erva -aparentemente a título excepcional por causa da implantação de uma FanZone, com ecrã gigante e área de lazer, para visionar os jogos do Mundial. Embora, disseram alguns vendedores, no Edital que comunicava a transferência estava plasmado ser também a título experimental.
Afinal, depois de interrogar, o que respondeu o autarca à reclamação? Simplesmente isto:

-Quanto é que a senhora paga por expor?
-Nada, senhor presidente! (respondeu a vendedora)
-Então, se a senhora não está contente não venha. Não volte! (rematou Machado)


Antes de entrar na análise sobre a reacção rude, intempestiva e inadequada de Machado, vamos aos preliminares:
Primeiro, sabendo os serviços da cultura municipal que a Feira de Velharias se realiza sempre ao quarto Sábado de cada mês na Praça do Comércio, porque razão colocaram lá a FanZone sabendo que colidia com o certame?
Por que não colocou o ecrã gigante noutro local da Baixa?
Porque não fez o contrário e instalou a FanZone no Terreiro da Erva?
Tendo pensado antecipadamente na mudança para o Terreiro da Erva porque não foi colocado um painel gigante na Praça do Comércio a informar os visitantes que mensalmente se deslocam a Coimbra da transferência?
Segundo, tentando dar resposta a estas questões formuladas, especulando, é de prever que o pelouro da Cultura agiu assim porque, por um lado, quer enterrar de vez a Feira de Velharias, por outro, pelo pouco respeito que manifesta a pessoas que esforçadamente se deslocam a Coimbra para animar a cidade -relembro que o critério não é igual para todos, basta recordar que alguns expositores que estiveram presentes na Feira Cultural de Coimbra, alegadamente, tiveram direito a subsídio de deslocação.
Não se procura tratamento igual -já que todo o espaço público que tenha por objecto retorno de investimento deve ser pago. Quem vende no espaço público, sem abuso da parte administrativa, deve comparticipar nos custos de implantação, não o fazendo, para além de gerar desigualdade, está a ser beneficiado em relação aos comerciantes instalados. 
Contrariando o que se possa pensar, o facto de não ser cobrada qualquer verba não serve os interesses dos expositores, já que nos últimos vinte e cinco anos a CMC nunca investiu qualquer verba, sobretudo em publicidade, para promover o certame. A alegoria esteve sempre entregue ao seu mentor Carlos Dias, proprietário do Velhustro, e decano das antiguidades na cidade. Para o bem e para o mal, foi graças a expensas suas que a festa mensal se foi fazendo e mantendo ao longo dos anos.
Certamente pela elevada idade de Carlos Dias, sendo parceira na fundação da feira, a CMC entendeu, por volta de 2010, colocar uma técnica no terreno a par com Carlos Dias. Talvez porque apanhou o mercado franco em cima de uma crise económica conjuntural e em crescimento, não foram feitas as alterações necessárias e tudo continuou como dantes


II 

A recessão que se instalou  no país, levando ao nascimento acelerado de feiras de rua em todos lugares habitados, fossem cidades médias, pequenas ou vilas, para além da demasiada oferta fragilizar todos os mercadores deu-se também o aparecimento do "Abutre sem alma". Este personagem, que sempre existiu no mundo comercial mas só aparece de tempos a tempos, quando as condições estão criadas, é um operador insensível, cuja arte, enquanto mística, não o toca, é um mero adquirente entre o vendedor e o comprador. Vende um móvel do IKEA e uma pintura de autor consagrado com a mesma displicência. Não distingue os valores da utilidade e artísticos. Não diferencia uma primeira edição rara de um vulgar livro de escritor de fim-de-semana.
Frio e sem coração, só dois pensamentos conduzem a sua vida: ganhar dinheiro e ganhar dinheiro. Quem não se recorda o que aconteceu a toneladas de obras artísticas em ouro que foram esmagadas e vendidas ao quilo?
Apresentando-se com simplicidade, bem-falante, gerando confiança a quem pretende vender, começa por prometer mundos e fundos. No meio de malabarismo psicológico, acaba por não cumprir o prometido e, levando apenas o mais valioso, acaba a pagar o que quer. Esmagando o vendedor particular, deixa-o a chorar com as mãos na cabeça.
Chegado com parte da carga ao armazém/loja a sua preocupação é realizar dinheiro rapidamente. Para isto acontecer, vende a qualquer preço -chegando a alienar peças com preço inferior ao custo. A sua intenção maior, e que lhe proporciona um certo gozo interior, é arrasar toda a concorrência em redor e criar fama de vender barato.
Como no acto de adquirir, o coleccinador/comprador/consumidor é desprovido completamente de valores de ética, moral e justiça, transformando-se num aborto sem senso, absorve sofregamente tudo sem pensar e torna-se instrumento precioso na destruição colectiva da arte. Quanto mais espremer o vendedor para comprar acessível, proporcionalmente, mais o prejuízo aumenta na sua extensa colecção que detém em casa. A factura tardará mas não falhará. Virá mais tarde quando quiser vender um acervo de obras que custaram ao longo de uma vida uma fortuna e verificar que, aparentemente sem nada fazer, perdeu cerca de dois terços do valor atribuído. Claro que a contribuir para tudo isto foi também o facto de, na última década, o conceito de arte se ter promiscuído: qualquer um é pintor, e pinta em barda, qualquer um é escritor, e escreve livros atrás de livros, qualquer um é escultor, e produz escultura a esmo, qualquer um canta e edita discos. A assistir a tudo isto está um público que, porque fica bem, sem coragem para dizer não, aceita tudo sem pestanejar. O resultado desta hecatombe, como se adivinha, só pode redundar em tragédia.
Por este andar, qualquer dia, comemos em pratos de faiança antigos, mas, como o seu preço desvalorizou infinitamente e ninguém dá nada por eles, envolvidos pelo manto da miséria, passamos fome.
As pessoas esquecem que a Arte, para constituir valor, nunca poderá ser democrática. E quando for acessível a todos, como está acontecer através do excesso de produção a baixo custo, o desvalor acentuado extermina toda a criação artística à sua volta.
É que a Arte para levar o selo diferenciador do comum tem de possuir quatro princípios acoplados: ser rara, ser cara, ser genuína, e ser descoberta. Perdendo uma destas premissas, passa a desconhecida ou vulgar objecto de adorno.


III

Quanto à manifestação de Manuel Machado para a senhora que interpelou, é de prever que aconteceu assim porque, tal como escrevi na introdução, como os vendedores não pagam ocupação de espaço público, logo, no entender do edil, quem deve agradecer, curvando a espinha e aceitando todas as faltas de respeito, são estes animadores sociais. Vindos de longe, com despesa certa e gratuitamente, como nada pagam, no entender do autarca, estão sujeitos a qualquer arbitrariedade sem poderem reclamar. São os novos saltimbancos, os trabalhadores sem salário e sem direitos que animam, fazem atrair gente, mas a cidade não lhes é devedora de qualquer atenção.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Encara o seu ofício como missão social"? Disse "missão social"? Ena... calma, são comerciantes. Se a missão fosse social, muitos não venderiam certas velharias ao preço de verdadeiras antiguidades, inclusive objetos em mau estado e mesmo estragados. É que é cada disparate. O Machado foi mal educado, sim, poderia ter dito exatamente a mesma coisa... de outra maneira. Como é que um comerciante tem a lata de se queixar, não pagando ocupação de espaço?