quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Ó CADAXO, SAI DE BAIXO!



 O Cadaxo é mais um dos muitos caminheiros anónimos que diariamente calcorreiam as pedras da calçada das ruas da Baixa. É um tipo “bacano”, humilde, não faz mal a ninguém, e, talvez por isso, desperte em nós um sentimento de protecção. Como todos, igualmente, tem uma história de vida para contar. Durante muito tempo, sempre que o encontrava e, na forma de cumprimento, lhe perguntava como ia, isto é, se estava bem, respondia assim: “claro que estou bem, senhor Luís! Porque não haveria de estar? Eu vivo muito bem!?! Os meus pais são muito ricos. Temos uma grande casa na Beira. Ainda este fim-de-semana lá estive. Fartei-me de comer cabrito. O meu paizinho, de contentamento, por me ver lá, matou um chibo de propósito. Os meus pais gostam muito de mim! Quer você saber, senhor Luís, que, a meio da noite, a minha mãezinha, acordou-me para eu comer uma malga de sopas de café com leite? Ela sabe que eu gosto muito! Somos uma família muito unida. Olhe que no Natal o meu paizinho mata sempre um borrego para toda a família. Você nem imagina o comprimento da nossa sala… faz duas vezes a largura desta loja. E as paredes? Só queria que você visse… (mas um dia há-de lá ir!)… só temos pinturas de grandes autores! E a nossa biblioteca?! Eu tenho milhares de livros!...
Você olha para mim, e, pela forma como ando vestido, se calhar até pensa: o Cadaxo é um sem-abrigo! Mas, sabe como é, eu não ligo às aparências. Lá, na minha casa da Beira, tenho um varão cheio de fatos de marcas, e do melhor. E camisas? Ai, senhor Luís, nem lhe conto! E sapatos? Tenho mais de 50 pares que estão para lá arrumados. Eu gosto de andar assim… de sapatilhas… -e levanta um dos pés, mostrando umas alpercatas que já viram melhores dias. Eu não gosto de andar aperaltado. Sou um tipo simples, como você vê. A minha mãe está sempre a ralhar comigo, por causa da forma desarranjada como me visto, mas eu não ligo.”
Claro que eu, que já passei as passas do Algarve, e com o tempo me transformei em psicólogo, nunca me fiei numa palavra do Cadacho. Fazia que acreditava, porque entendia que este homem, castrado pela vida, no fundo, bem no fundo, gostaria que a sua existência fosse assim. Este seu relato não era mais do que uma projecção da sua alma magoada, cheia de sofrimento e carente de amor. Então, como pintor de cenários edílicos, coloria a sua história de tons vivos, de modo infantil e a seu bel-prazer. Volta e meia lá repisava eu: “ó Cadaxo, mas tu estás bem? Onde é que estás a viver?” –insistia. E lá vinha a indignação do meu interlocutor. Até que há dias, perante mais um cumprimento, o Cadaxo se descaiu: “tenho de lhe contar a verdade, senhor Luís: “eu estou a viver na Casa-abrigo de Coimbra. Já estive muito bem na vida até há uma dezena de anos. Já vendi automóveis. Já fui estabelecido com electrodomésticos, já fiz muita coisa na vida. Sempre na Lousã. Depois as coisas começaram a descambar e nunca mais deixei de cair. Mas, se não se importar, gostaria de não falar mais neste assunto…”


2 comentários:

JPG disse...

Como escreveu (e cantou) o Sérgio Godinho:

"Mas isto é um canto
E não um lamento,
Agora façamos o ponto
E mudemos de assunto!"

Grande texto, grande sensibilidade e no fundo, no fundo, todos temos um pouco de "Cadaxo", ou não???

LUIS FERNANDES disse...

Muito obrigado, João Pedro, pelo comentário.
Respondendo à sua questão, concordo inteiramente. Todos temos um pouco de "Cadaxo", sim. Absolutamente!
Um grande abraço, e boas festas.