“A
moda agora é enterrar a autenticidade num sarcófago
de
esquecimento, como nada se passasse de invulgar, e,
como
efeito de varinha mágica, transformar tudo em boas-novas
de
esperança. Como se o futuro fosse um mero capricho
do
destino e não assentasse em pontos estruturais que
lhe
dão suporte físico e espiritual, através da inversão
de
valores, passou a relevar-se o faz-de-conta e a deixar
cair
os braços em sinal de rendição.”
Encerrou
ontem a Marvac, uma vetusta firma de mobiliário, louças e materiais
para casa-de-banho, na Rua Simões de Castro.
Segundo
a página na Internet, “A empresa iniciou a sua actividade em 23
de Janeiro de 1946 na rua da Sofia nº123 e 125 em Coimbra, no
comércio de cristais, vidros e materiais de construção. Em 1999, a
empresa mudou de instalações para a rua Simões de Castro nº153,
onde presentemente continua a funcionar. A Marvac tornou-se uma
referência no que se refere à qualidade e fiabilidade dos seus
produtos e no apoio aos seus clientes. Na nossa gama de produtos,
damos preferência aos produtos nacionais e de marcas conceituadas”.
Depois
de 70 anos a laborar na Baixa de Coimbra, cerca de meio-século na
Rua da Sofia e vinte anos na Rua Simões de Castro, quase a pedir
desculpa por partir sem despedida, quase em segredo, a Marvac foi
para o infinito de silêncio onde repousam todas as grandes empresas
que marcaram a história da cidade. Onde quer que esteja, o velho
Espalha, o homem do leme que conheci e que foi o cartão de
identidade desta reputada marca, deve estar a dar voltas na tumba e
a interrogar-se sobre o que está a acontecer ao velho comércio de
cidade.
Não
tenho bem a certeza mas creio que chegou a ter mais de uma dezena de
funcionários -actualmente, até ontem, três pessoas faziam parte
dos seus quadros.
Como
nota de rodapé, fica a tentativa vã de, na semana passada, me ter
deslocado duas vezes ao estabelecimento para escrever a história da
Marvac para, aqui no blogue, ficar para memória futura.
UM
CASO PARA REFLECTIR
Os
filósofos do comércio tradicional, os grandes pensadores que se
debruçam sobre a temática mercantil e têm resposta pronta para
culpar os comerciantes sobre os continuados fechos, nomeadamente
acusando-os de não aderirem às novas ferramentas de venda através
da Internet, têm aqui um bom tema de análise para contrariar as
suas teses de axioma, verdades sem contestação. Claro que, como já
vem sendo hábito, o ónus recai sempre em quem parte. Argumentar que
o que está a dizimar a um ritmo frenético os velhos espaços
comerciais que marcaram um tempo citadino e foram o sustentáculo do
seu desenvolvimento, entre outros, é a demasiada oferta
disponibilizada pelas grandes superfícies, que têm um maior poder
de aquisição e melhor preço de venda, para estes comentadores,
estas premissas não contam para nada. O que é preciso é encontrar
alguém para sacrificar, e os mortos não falam. Nesta parte os
políticos, locais e nacionais, dos últimos vinte anos souberam bem
desonerar-se da sua responsabilidade nos licenciamentos em barda
e, numa estratégia brilhante, invertendo o ónus da prova,
conseguiram lavar as mentes dos consumidores colectivamente. De tal
modo é o sucesso da mentalização que, quer os que vão caindo uns atrás dos outros, quer os que ainda resistem temporariamente com morte anunciada, todos evitam falar sobre o que está acontecer. E quando
comentam, colocando em prática o Sindroma de Estocolmo, enaltecem e
procuram captar a amizade do seu agressor. A moda agora é enterrar a
autenticidade num sarcófago de esquecimento, como nada se passasse
de invulgar, e, como efeito de varinha mágica, transformar tudo em
boas-novas de esperança. Como se o futuro fosse um mero capricho do
destino e não assentasse em pontos estruturais que lhe dão suporte
físico e espiritual, através da inversão de valores, passou a
relevar-se o faz-de-conta e a deixar cair os braços em sinal
de rendição. Pela tática seguida, sobretudo os nossos edis que
vivem da hipocrisia social, estão cada vez mais gratos a estes novos
mensageiros da verdade falseada.
Desde
Janeiro, último, este é o 22º encerramento comercial na Baixa de
Coimbra.
Uma grande salva de palmas para a Marvac, que foi agora enterrada em campa rasa, sem direito a oração de encomenda ou epitáfio para a posteridade.
Uma grande salva de palmas para a Marvac, que foi agora enterrada em campa rasa, sem direito a oração de encomenda ou epitáfio para a posteridade.
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