terça-feira, 19 de junho de 2018

BAIXA: DEPOIS DE 70 ANOS, ENCERROU A MARVAC





A moda agora é enterrar a autenticidade num sarcófago
de esquecimento, como nada se passasse de invulgar, e,
como efeito de varinha mágica, transformar tudo em boas-novas
de esperança. Como se o futuro fosse um mero capricho
do destino e não assentasse em pontos estruturais que
lhe dão suporte físico e espiritual, através da inversão
de valores, passou a relevar-se o faz-de-conta e a deixar
cair os braços em sinal de rendição.”

Encerrou ontem a Marvac, uma vetusta firma de mobiliário, louças e materiais para casa-de-banho, na Rua Simões de Castro.
Segundo a página na Internet, “A empresa iniciou a sua actividade em 23 de Janeiro de 1946 na rua da Sofia nº123 e 125 em Coimbra, no comércio de cristais, vidros e materiais de construção. Em 1999, a empresa mudou de instalações para a rua Simões de Castro nº153, onde presentemente continua a funcionar. A Marvac tornou-se uma referência no que se refere à qualidade e fiabilidade dos seus produtos e no apoio aos seus clientes. Na nossa gama de produtos, damos preferência aos produtos nacionais e de marcas conceituadas”.
Depois de 70 anos a laborar na Baixa de Coimbra, cerca de meio-século na Rua da Sofia e vinte anos na Rua Simões de Castro, quase a pedir desculpa por partir sem despedida, quase em segredo, a Marvac foi para o infinito de silêncio onde repousam todas as grandes empresas que marcaram a história da cidade. Onde quer que esteja, o velho Espalha, o homem do leme que conheci e que foi o cartão de identidade desta reputada marca, deve estar a dar voltas na tumba e a interrogar-se sobre o que está a acontecer ao velho comércio de cidade.
Não tenho bem a certeza mas creio que chegou a ter mais de uma dezena de funcionários -actualmente, até ontem, três pessoas faziam parte dos seus quadros.
Como nota de rodapé, fica a tentativa vã de, na semana passada, me ter deslocado duas vezes ao estabelecimento para escrever a história da Marvac para, aqui no blogue, ficar para memória futura.


UM CASO PARA REFLECTIR


Os filósofos do comércio tradicional, os grandes pensadores que se debruçam sobre a temática mercantil e têm resposta pronta para culpar os comerciantes sobre os continuados fechos, nomeadamente acusando-os de não aderirem às novas ferramentas de venda através da Internet, têm aqui um bom tema de análise para contrariar as suas teses de axioma, verdades sem contestação. Claro que, como já vem sendo hábito, o ónus recai sempre em quem parte. Argumentar que o que está a dizimar a um ritmo frenético os velhos espaços comerciais que marcaram um tempo citadino e foram o sustentáculo do seu desenvolvimento, entre outros, é a demasiada oferta disponibilizada pelas grandes superfícies, que têm um maior poder de aquisição e melhor preço de venda, para estes comentadores, estas premissas não contam para nada. O que é preciso é encontrar alguém para sacrificar, e os mortos não falam. Nesta parte os políticos, locais e nacionais, dos últimos vinte anos souberam bem desonerar-se da sua responsabilidade nos licenciamentos em barda e, numa estratégia brilhante, invertendo o ónus da prova, conseguiram lavar as mentes dos consumidores colectivamente. De tal modo é o sucesso da mentalização que, quer os que vão caindo uns atrás dos outros, quer os que ainda resistem temporariamente com morte anunciada, todos evitam falar sobre o que está acontecer. E quando comentam, colocando em prática o Sindroma de Estocolmo, enaltecem e procuram captar a amizade do seu agressor. A moda agora é enterrar a autenticidade num sarcófago de esquecimento, como nada se passasse de invulgar, e, como efeito de varinha mágica, transformar tudo em boas-novas de esperança. Como se o futuro fosse um mero capricho do destino e não assentasse em pontos estruturais que lhe dão suporte físico e espiritual, através da inversão de valores, passou a relevar-se o faz-de-conta e a deixar cair os braços em sinal de rendição. Pela tática seguida, sobretudo os nossos edis que vivem da hipocrisia social, estão cada vez mais gratos a estes novos mensageiros da verdade falseada.
Desde Janeiro, último, este é o 22º encerramento comercial na Baixa de Coimbra.
Uma grande salva de palmas para a Marvac, que foi agora enterrada em campa rasa, sem direito a oração de encomenda ou epitáfio para a posteridade.


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