É meio-dia desta quarta-feira a
seguir ao Natal. Está um dia bonito, vistoso e brilhante, com o sol a invadir
os largos e praças e as artérias de maior amplitude. A Rua Eduardo Coelho,
sendo estreita, apenas é bafejada pela claridade do astro-rei aqui e ali e faz
algum frio. O movimento de transeuntes, como estrada de dois sentidos, é normal
e igual a outro qualquer dia da semana. Nesta outrora via de artífices
sapateiros, a maioria das lojas está aberta hoje –no seguimento de um costume
antigo, por troca do comércio estar a funcionar nos feriados de 1 e 8 de Dezembro,
encerra em 26 de Dezembro e 2 de Janeiro.
Como se partisse em busca do sol
redentor de força anímica que me alimenta a alma, sigo em direcção à Praça 8 de
Maio, passando pela Rua do Corvo que tal como a antecedente está com os
negócios a meio-gás. No antigo Largo de Sansão, com uma luminosidade que apetece
abraçar e levar para a minha rua, fazendo analogia com os demais, poucos
negócios estão abertos para receber clientes. Há um pormenor que salta à vista:
a base do pedestal em que se encontra a escultura alegórica ao Pai Natal e em
frente ao Panteão Nacional está acompanhado de uma exposição de camisolas a
serem alienadas por ciganos, presumivelmente de contrafacção. No murete em
frente ao Banco Espírito Santo e Café Santa Cruz, este hoje encerrado, como roupa a corar
em estendal, a mesma coisa. Disse-me um comerciante da zona que volta e meia
aparece a Polícia Municipal e estes vendedores rapidamente fogem, mas quando os
cívicos viram costas retornam aos seus lugares conquistados à força da teimosia.
Penso para mim se, pela ilicitude, devo condenar ou não estas pessoas por estarem
ali a cuidar da sua vida. Em rápido julgamento sumário, fazendo analogia e
levando em conta que cerca de 40 por cento dos comerciantes não se deram ao
trabalho de abrir neste dia, acabo por absolvê-los. Cá por mim, podem vender à
vontade hoje, nem que seja para dar uma lição aos lojistas, que passam a vida a
queixar-se de que as coisas estão muito más mas, para além de hoje, na
segunda-feira praticamente encerraram todos a meio da tarde. Há crise? Onde?
Onde pára esta senhora? Deve ser apenas um fantasma ondulante que paira no ar.
Façam o favor de vender hoje à vontade senhores comerciantes ciganos.
Entro na Rua Visconde da Luz e mais
uma vez dou de caras com os raios solares. Sem pedir licença, sem inibição e
com a minha permissão, o sol beija-me todo da cabeça até aos pés. Também nesta
calçada de via larga o movimento de passantes é contínuo. Fazendo comparação
novamente, a amostra é igual: só uma maioria de lojas está aberta. Mais à
frente, na mesma rua e traseiras da igreja de São Tiago, o Lourenço Pina, que
faz parte da “Orquestra de Músicos de Rua”, canta e toca viola e,
provavelmente, pede a todos os santos que o ajudem a conseguir 3 euros para
conseguir sobreviver diariamente. O Pina, outrora pescador cabo-verdiano pobre e agora doente,
é muito humilde e contenta-se com pouco. Talvez essa seja a razão de ele morar
numa casa de favor no Beco dos Marthas, ao lado do Portugal dos Pequenitos,
onde chove, não tem móveis, electricidade, gaz ou outros apetrechos que são
essenciais ao bem-estar de qualquer um de nós. Estranhamente o Lourenço, num
sorriso de menino que ainda acredita no Pai Natal e na boa-vontade dos homens,
sorri. Pergunto-me de que se rirá ele? Da sorte que lhe calhou em sina, ou do fado
que lhe calhou em destino? Em solilóquio, penso para com os meus botões que
vivemos num mundo naturalmente injusto, desequilibrado, e paradoxal. Quem mais
reclama é sempre o que mais tem e mais poderia fazer pela vida se estivesse
disposto a isso, se tivesse predisposição para o esforço e entrega ao
desenvolvimento próprio e por arrastamento à colectividade. Hoje não vivemos
apenas uma crise financeira. Em paralelo com esta, como desencadeante, em
subsequência, temos vários problemas para resolver. Um deles é as pessoas terem
de reconhecer que estão mais pobres e, pelo menos para se manterem com um nível
de vida aceitável, terão de trabalhar o dobro para ganhar metade do que auferiam
noutros tempos de economia pujante. Não vou discutir o mérito desta injustiça
latente, apenas o afloro em constatação. Esta é a realidade. Podemos
dissecá-la? Podemos sim, e até à exaustão, mas a dialéctica não evitará a realidade
nua e crua. Pelo que vejo à minha volta, parece-me, a maioria ainda não tomou
conta deste modo de coisas e, como adormecidos, continuam a bailar num estado
de entorpecimento e a enganar-se a si próprios. Sem retirar a valoração à
reivindicação justa, no meu entendimento, a única forma de sair desta(s) crise(s)
será através da entrega ao trabalho. Pode argumentar-se que o Estado, através
de impostos de confisco, está a ser um predador de quem labora, é verdade, e
contribui para a desmotivação e para o “arremessar a toalha ao chão”. Mas
podemos dar-nos ao luxo de desistir? Nesta altura do campeonato, pessoas como
eu que já passaram o meio-século, podem ousar abandonar tudo? Vão viver de quê?
Voltando à minha caminhada, estou
agora no Largo da Portagem. O sol espreguiça-se todo e com os seus metafóricos
braços apanha todos em redor. Que inveja tenho de não trabalhar aqui. Como
sempre as esplanadas estão bem compostas. Neste “hall” da cidade, hoje,
contrariamente a outros colegas de hotelaria que encerraram, nesta praça do “mata-frades" Joaquim António de Aguiar, está tudo aberto. E sigo em direcção à Praça do
Comércio. Em amostra similar só algumas, poucas, lojas sorriem para o público.
Vamos esperar que todos acordem
para a verdade e que não se deixem submergir por esta lassidão que, como nuvem
tóxica, nos envolve a todos e faz perder a esperança. Tenhamos fé que esta maré
negra há-de passar. DESPERTEMOS!
1 comentário:
Venda ambulante foi alvo da PM: http://campeaoprovincias.com/pt/index.php?option=com_content&view=article&id=13080:coimbra-venda-ambulante-foi-alvo-da-pm&catid=14:actualidade&Itemid=130
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