domingo, 2 de dezembro de 2012

O ÚLTIMO SUSPIRO DO SACRIL(ÉGIO)



 Morreu ontem o Sacril. Tinha à volta de 50 anos. Como é que se pode morrer tão novo? Interrogarão alguns mais chegados. Para outros, mais que certo, estava numa altura óptima para deixar este mundo. Afinal meio século é sempre o meio de qualquer coisa, neste caso metade de 100 anos. Mas quem chega lá, à centúria, salvo excepções, já não vive, arrasta-se, sobrevive. 
O Sacril morreu desta doença da moda. Dizem que foi a mudança dos costumes que o condenou inexoravelmente. Parece que é um  vírus que anda por aí à solta e tão depressa não haverá antídoto. Já há quem lhe chame a peste negra destes tempos. Mas este seu perecimento deixa saudades? Se calhar não. Afinal é mais um que partiu. E que importa isso? É certo que nos primeiros dias vamos notar a sua falta, mas depois habituamo-nos e passa. A vida é uma roda que vai girando devagar para uns e a correr para outros. De vez em quando lá cai um raio da circunferência, mas imediatamente outro tomará o seu lugar e a cidade, que é feita de todos mas  de ninguém em especial, na sua continuidade assente nestes figurantes, no seu caminhar insensível rumo ao futuro, não se sabendo onde fica nem a quem pertence, prossegue a sua marcha silenciosa sem proferir um lamento de dor.
Só quem convive muito de perto com o falecido sofre. Sofre não. Padece, mingua de amargura. Contava-se por cá, à “boca sussurrada”, aqui e acolá, como manda a lei da ética cá no bairro, que o Sacril estava nas últimas. Dizia-se que era por isto e por aquilo. Como sou o coscuvilheiro de serviço –gostava de ser cangalheiro, ganhava muito mais, e tinha futuro garantido, mas já há muitos-, naqueles gestos de coragem –confesso que é raro sair uma coisa assim  de mim-, há três dias, vi a Sandra, uma das familiares directas do Sacril, muito magra e com um espírito de grande angústia pesada a envolver todo o seu frágil corpo de mulher bela de trinta e poucos anos. Comecei por pedir desculpa por me estar a meter na sua vida e interroguei se era verdade o Sacril estar muito doente e se corria risco de vida? E a Sandra, já muito debilitada, em manifestação de alguém que vai perder um familiar chegado, sem força anímica, não conseguiu conter as lágrimas, que lhe caíram em turbilhão por aquele rosto lindo, mas muito fragilizado. “É verdade, sim, senhor Luís. É muito duro o que nos está acontecer! Ao morrer o meu estabelecimento Sacril falece uma parte de mim, um pedaço de carne de todos nós, o coração da minha família. Ali está a vida dos meus pais, que, para ver se nos aguentávamos, já há muito que não nos cobravam renda, a mim e à minha irmã. São 50 anos de história que se perdem, que se esvaem como água por entre os dedos, aqui na Rua das Padeiras, como estas lágrimas que escorrem pela minha cara. É muito duro. Não merecíamos isto! É um castigo demasiado grande. Somos quatro pessoas a viver da loja. Não dá para continuar. Deixou de dar, e não é por falta de esforço de todos que lá trabalhamos. Nunca imaginei uma coisa destas! Nasci ali, senhor Luís. Como é que vou viver sem o Sacril? Ali está a minha alma, todo o meu ser. É tudo para mim! Não sei se vou aguentar. Há uns meses que ando a emagrecer cada vez mais. Já há muito que não consigo dormir. Mesmo com os fármacos que me receitaram não vou além de duas horas. O que vai ser de mim sem a minha loja, senhor Luís?”


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