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Ontem a recém-criada “Orquestra
de Músicos de rua de Coimbra”, composta maioritariamente por músicos que tocam
nas artérias da cidade, cerca de oito, realizou o seu terceiro ensaio no
Pavilhão de Portugal, na sede da Orquestra Clássica do Centro, e num gesto
incomensurável de boa vontade da sua presidente, Emília Martins.
Antes de prosseguir, gostaria de
esclarecer que este projecto musical é aberto a todos quantos amem a música.
Sobretudo àqueles que, por motivos vários, em tempo útil, não puderam estudar e
exercer o que tanto gostaram sempre de fazer, neste caso a música. À nossa
volta há tantos talentos perdidos. Cidadãos que se o meio onde nasceram tivesse
sido outro, não tenho dúvida, os seus futuros teriam sido completamente
diferentes. Sem querer entrar em grandes estudos psico-sociais, todos nós somos
o resultado de várias premissas; do meio envolvente onde gritamos pela primeira
vez; do interesse em quem está à nossa volta em nos dar ferramentas para
podermos desenvolver as nossas aptidões; e pela nossa vontade. Se repararem a
vontade surge em último lugar, quando, aparentemente, deveria aparecer em
primeiro. Mas não é assim. Não era minha intenção alargar-me nos conceitos, mas
quando começo a escrever é como entrar num escorrega, deixo de ter controlo e
não sei para onde vou e, por isso mesmo, vou continuar a especular. Já agora, segundo
os filósofos Decartes e Santo Agostinho, “vontade” era sinónimo de “liberdade”,
no sentido de que na “voluntas” o indivíduo pode optar entre o bem e o mal. Mas
a escolha em liberdade acaba aí. Ninguém pela sua vontade, pelo seu legítimo direito
de liberdade, mesmo dentro do bem, pode fazer o que lhe apetecer, sobretudo se
viver em sociedade. Se assim acontecer, para além de estar limitado ao direito comum,
está também condicionado pela vontade do outro. Por outro lado, no que toca aos
dons, se nascemos num meio pobre e humilde não basta ter “vontade” de querer
para “ser”. Se queremos “ser”, essa “vontade” terá de ser dobrada na intenção,
porque raramente a sociedade está sensibilizada para escolha individual, para o
reconhecimento “in factum” sobretudo vindo de um “zé ninguém”. É como se pela
declaração de mérito tenha de estar associado um currículo familiar. Por isso
mesmo, erradamente, todos enveredam pelo adágio popular de que “filho de peixe
sabe nadar”. Acontece que, se na maioria poderá acontecer, devido ao ADN, ao
lado cromossomático, uma minoria, em completo desvio, não se identifica com os
progenitores. É assim que vivemos rodeados de anedotas, burocratas, sem valor,
que, muitas vezes com receio de serem ultrapassados, continuam a condicionar o
futuro de milhões. Há excepções? Sim, felizmente há luar. Esta prova de confiança dada por Emília Martins, que sem nos conhecer de lado nenhum acreditou no nosso querer de fazer, mostra isso mesmo.
Por outro lado, ainda, vivemos todos dentro de uma “vontade” que, na
maioria dos casos, não é a própria e subjectiva, porque é extremamente
influenciada pelo meio. E quanto mais frágil for o ente, menos pensa e mais
facilmente é dominado pela vontade da maioria. Essa “vontade” global é-nos
imposta pela publicidade, tantas vezes propagandeada pelos meios noticiosos, e acaba por manipular e subverter completamente a
nossa intenção individual e impõe-nos a dos outros, do grupo. Funcionamos todos
por “clichés”, por frases e imagens feitas, e, como carneiros em manada,
pisamos o tapete que nos estendem à frente. Claro que tudo assenta no
bombardeamento contínuo de informação. Em face desta hemorragia, deixamos de raciocinar,
porque no meio de tanto lixo é impossível ver a luz, acomodando-nos, deixamos
que outros pensem por nós. Passamos a olhar o todo sem atentar nos pormenores idiossincráticos de cada um.
Vou dar dois exemplos: há tempos
li que um a famoso músico, que não lembro o nome, esteve a tocar na rua,
passando completamente despercebido, e ninguém lhe deu o mínimo valor. Os seus
concertos são pagos a peso de ouro. Outro ainda, em 2009, Bob Dylan, a lenda
viva da música mundial, foi preso em New Jersey, nos Estados Unidos, por ter
sido confundido com um mendigo. Ou seja, cada um de nós vale apenas se for
reconhecido pelo “grande júri” e pouco pela nossa apreciação particular. Interessa
mais a imagem do que verdadeiramente a manifestação intrínseca que lhe deu
origem. A excepção confirma a regra quando algum “olheiro” detecta um talento
no meio da rua. Mas imaginemos que estes caçadores de vocações nunca se cruzam
com um artista em potência? O que acontece? É o normal, passa uma vida errática
sem nunca ser reconhecido. A história está prenhe de casos destes. Sei lá, são
tantos que até custa enumera-los: por cá, nas letras, pensemos em Camões, em
Pessoa, na música, em António Variações. Por lá, na pintura, pensemos em Van
Gogh, na física, Einstein, que na escola foi um aluno medíocre e se veio a revelar
o maior de todos.
E agora podem não acreditar, mas
o que escrevi neste texto não é nada do que tencionava descrever quando iniciei
o primeiro parágrafo. Não importa, porque vou escrever outra crónica a seguir.
De qualquer modo remato que quem quiser fazer parte da “Orquestra de músicos de
rua de Coimbra apenas precisa de comparecer no Pavilhão de Portugal, ao fundo
do Parque Verde do Mondego, às terças e quintas-feiras e, com vontade
explícita, dizer: “eu quero fazer parte do vosso grupo!”.
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