Faltava um quarto de hora para as
13h00 deste último Domingo, 9 de Dezembro, quando coloquei os pés no piso
alcatroado do recinto da feira mensal do Travassinho, junto à Vacariça. Estava
um lindo dia de sol. Os feirantes começavam a arrumar as tendas. Era o revirar
de um capítulo que começou em inverso por volta das 6h00 da manhã, ainda o
astro-rei dormitava nos braços da sua Lua. Apesar de estar no fim da venda,
ainda por lá andava muito povo. Ali respirava-se o tradicional, o pitoresco, o
espírito popular.
Ao mesmo tempo que apreciava os
rostos dos vendedores, com um olhar displicente comecei a mirar todas as
exposições. Ali havia de tudo, desde mobiliário em pinho, sapatos, roupas,
ferramentas agrícolas, sementes, latoaria, barros tradicionais, plásticos, e
uma boa tenda de comes e bebes e que mais à frente falarei dela. Foi então que
vi e ouvi o homem do chapéu preto a falar com um provável cliente interessado
num par de sapatos da sua banca. Não era um exclamar igual a outro qualquer vendedor.
Foi a sua abordagem ao possível comprador que me chamou a atenção. Já sou
velho. Já corri veredas e caminhos árduos que, pela experiência adquirida, me
tornaram mais sensível do que muitos. Quase sensitivo. Estava na presença de um
verdadeiro artista vendedor. Um actor que, pela lábia usada, conhecia o
espírito humano melhor do que alguém. A forma como perante a impossibilidade de
compra ele saiu de trás da montanha de calçado e, de sorriso nos lábios, veio à
frente tentar o convencimento do freguês, não tive dúvida: estava perante um
mestre. Quem é este feirante? Vamos apresenta-lo na primeira pessoa: “chamo-me
José Manuel Oliveira, e sou de Santa Maria da Feira. Trabalhei muitos anos na
desaparecida Oliva, em S. João da Madeira. Depois, por lá, as coisas começaram
a correr mal e há 27 anos que abracei a profissão de vendedor. Já tive uma
sapataria, mas vendi-a e enlacei o ramo de feirante. Agora a minha sapataria chama-se
“Porta Aberta”. Está ver? Olhe este solinho lindo a beijar os meus sapatos –e escancarou-se todo a rir. Quando me perguntam o meu endereço, digo que é a sapataria “Porta Aberta”,
na Rua de Sá Carneiro, levem os sapatos e deixem o dinheiro” –e mais uma risada
enorme que até me contaminou.
Pergunto ao senhor Oliveira como
vão as vendas, ultimamente e com a crise. Responde assim: “muito mal, meu
amigo. Olhe que isto já não vai lá com oferendas. Repare, farto-me de oferecer
viagens com alojamento incluído e nem assim vendo mais. E não pense que faço
isto há pouco. Nada disso! Já frequento esta feira há quase meia-dúzia de anos, e na
compra de um simples par de sapatos, sempre ofereci uma viagem a Fátima, a pé,
e acolhimento no “Hotel Valeta”, aqui na Mealhada. Pensa que vendo mais? Nada
disso! Ninguém aceita. E até faço mais, sempre que vendo calçado, até podem ser
umas pantufas, abençoo sempre o comprador: que Deus te abençoe, meu filho! Vais
com a carteira mais vazia, mas vais abençoado! Nas feiras do centro do país, toda
a gente me conhece como o “homem do chapéu preto”. Onde se perguntar por uma
pessoa divertida e que se faz acompanhar com uma campainha todos sabem que é o “Zé”
Oliveira, que está sempre em “promochão”, levem-me os sapatos e deixem-me o
tostão!” –e ri a bandeiras desfraldadas.
E a partir de Janeiro, como vai
ser, senhor José Manuel? Interroguei. Aqui reparei que a sua face, como tocada
por picada de insecto, enrijeceu de repente. “Vejo isto com muita preocupação.
Eles, políticos, estão mesmo a preparar-se para acabar de vez com o pequeno. A
partir de meados do próximo ano vai ser uma caça ao rato. Nós, como eu, que
sempre trabalhei desde pequeno, somos os ratos. Entende? Vai ser um extermínio.
Não sei se valerá a pena continuar.”
Fui seguindo todos os stands com
o olhar, um a um. Registei um pormenor interessante. Estes vendedores detinham
um ar de aparente tranquilidade. Isto em completa contradição com os comerciantes
das lojas da cidade. Fui andando até que parei no melhor ponto de venda da
feira do Travassinho. Ali mesmo na hora do fecho continuava-se a cozer pão em
dois fornos de lenha. Lá num canto um pernil de borrego ia sendo descascado em
tiras para os muitos comensais. Eu estava na venda do meu amigo Jorge de Jesus,
de Barrô, a minha terra-natal. Entretanto encontrei lá também um outro meu amigo, o
Manuel Teresinho, de Foz de Arouce, e fabricante dos melhores enchidos de
Portugal. Não estou a exagerar. O ”Manel”, com uma modéstia invulgar, produz
aqui a dois passos de Coimbra, umas alheiras tipo Mirandela, uma morcela da
nossa avó e uns chouriços que, meu Deus, pela saúde pública, nomeadamente o
colesterol, eu não deveria publicitar. Mas, com inteira verdade, aquelas
tentações pantagruélicas são boas de mais para poder passar ao lado. O
Teresinho assou nas brasas umas peças da sua produção e fomos sentar-nos numa
mesa do stand do Jorge. Pedimos umas fatias de pernil, acompanhados de bom
tinto, e provámos o melhor pão da Mealhada que se coze por aquela zona. Pensam
que estou a agigantar? Se duvidam façam uma visita à feira do Travassinho, que
se realiza ao 2.º Domingo de cada mês.
E como é que o Jorge vê este
encontro de vendedores e estes tempos de crise? “Olha, pá, é uma boa feira.
Ainda não senti a crise. Vendo muito bem. É certo que, nesta equipa familiar,
trabalhamos todos muito e sempre no sentido de apresentar uma cada vez maior
qualidade. Sabes que as pessoas partem da ideia errada que nestas alegorias não
há atributos. Quando alguém me fala assim desafio-os a virem provar o que
vendo.
Quanto ao sucesso desta venda popular,
ele vai por inteiro para o José Rosas, o presidente da Junta de Freguesia de
Vacariça, e o seu executivo. Sabes que eu faço muitas feiras para além desta…
já viste este chão? Todo lisinho? Compara-o com outros lugares que conheces!
Olha ali as duas casas de banho? Olha lá para cima, para aquele grande parque
de estacionamento. Este homem esmera-se aqui. É graças a ele, ao seu empenho,
que, para mim, é a melhor venda da região. Aqui todos fazem negócio. É uma
satisfação, não é?"
Sem comentários:
Enviar um comentário