(FOTO DE MARIA LUÍSA SILVA)
Com a tradicional serenata no
Largo da Sé Velha, oficialmente, começou ontem a semana da Queima das Fitas em
Coimbra.
Esta noite passada a Baixa da
cidade esteve repleta de estudantes. Em todas as suas ruas, becos e vielas,
eram visíveis capas negras. Cerca das 23h00, na Praça 8 de Maio, o movimento
era indescritível. Encontrei um amigo -um pouco mais velho do que eu, deve ter
cerca de 65 anos- -, que tem uma pensão aqui na zona, e comentei: que bonito,
que é ver a Baixa povoada. Havia de ser assim todos os dias. Retorquiu o meu
conhecido, “é verdade, só é pena é que esta gente não tenha maneiras. Parecem
bandos de bois à solta” –ainda não tinha concluído o raciocínio quando se ouviu
um estilhaçar de vidros na praça. A seguir outro igual. Provavelmente teriam
sido copos a embater na pedra do chão. Continuámos a conversar e concluiu: “está
a ver? Nós, os que moramos aqui, não precisamos de vândalos, precisamos, isso
sim, de pessoas cordatas e que respeitem quem cá vive. Já viu que nem um agente
da PSP se encontra por aqui?”
Tenho falado com várias pessoas e
o sentimento é o mesmo. Todos deixam transparecer um azedume contra o
comportamento reiterado de uma maioria de estudantes –saliento que nos anos
anteriores tem acontecido alguns incidentes, como, por exemplo, montras partidas
e barulho, muito barulho durante toda a noite e de modo a que ninguém consegue
pregar olho.
Então deveremos depreender que os
residentes, os chamados futricas, estão já de “pé-atrás”, com um “a priori”,
contra os invasores? É possível, sim. Olhando para mim, sinto que sou tomado do
que está para trás, embora noto que, nestes dias de folia, há uma constante
provocação nas coisas simples, como exemplo, se nós formos a passar de carro
numa rua estreita e estiver um grupo, muitas vezes, ninguém se afasta nem mesmo
tocando a buzina. Já me aconteceu ter de sair do automóvel e barafustar –claro que
tenho de confessar, se calhar, devido à diferença de idades, entre mim e eles,
há um fosso intransponível. Não sei, mas talvez aquela irreverência, aquela
juventude, me choque, porque, quer queira quer não, faço imediatamente
comparação com o meu tempo em que tinha a idade deles. No meu caso, que sempre
trabalhei e até cheguei a entrar na Universidade através do exame “ad hoc” –embora
saísse pelo portão dos fundos-, até posso admitir algum ressabiamento, assim no
género: se vocês passassem o que eu passei para lá entrar talvez dessem mais
valor à relação que vos liga com o cidadão comum. Mas como entender o azedume
de tantos indivíduos licenciados que conheço e que até nem são tão velhos como eu?
Ou seja, é de ver que estas pessoas, há cerca de uma dezena de anos, teriam
feito a mesma coisa. Ou não fizeram? Se calhar não fizeram mesmo. O que me
parece é que, progressivamente, nas últimas décadas, foi-se estabelecendo um
fosso maior entre os “vintage” e os trintões, quarentões e por aí fora. Isto é,
como para efeitos laborais, um trintão já é considerado velho em relação a
alguém com vinte, estou convencido que esse sentimento fez envelhecer
precocemente aqueles que, para todos efeitos de calendário ainda são novos e
daí, inconscientemente, fez nascer uma incompreensão pelos desvarios dos mais
novatos. Por outro lado, a meu ver, enquanto os trintões se tornaram mais
maduros pela força do tempo de carestia e recuaram no poder de intervenção
perante uma qualquer tropelia de um jovem, os mais novos, vivendo à custa dos
pais e com uma percepção imatura e irresponsável da vida, e como não encontram
oposição dos mais velhos –a tal reserva moral da Nação- avançam cada vez mais,
como se fosse um desafio, e tornando-se senhores de um território inimaginável,
parecem cada vez mais crianças crescidas. Por outro lado, como esta geração “vintage”
é a mais culta de todos os tempos até hoje, com ferramentas imensas, através da
Internet, viajam pelo mundo inteiro, criaram uma sensação de superioridade, e
até impunidade, em relação aos pais. É evidente que a experiência adquire-se
com o lavrar a terra e não com a informação de como se faz, mas eles confundem
facilmente a informação com o conhecimento, para eles é a mesma coisa. A sua
argumentação, com base na sua intelectualidade, é de tal modo eficaz e
demolidora que, mesmo com apenas uma dezena de anos de diferença, um mais
velho, já não tem traquejo para arguir em contraditório. Isto dá para ver,
creio, que os tempos que vivemos de forma rápida, estão a criar abismos entre
as gerações –ressalvo que sempre houve. O que se passa agora é que os cortes
são brutais entre pessoas quase da mesma época.
Isto explica esta antipatia pelos
estudantes na semana académica da Queima das Fitas em Coimbra? Não sei. O que
sei é que esta noite, contrariando anos anteriores, na Baixa, cerca das 2h00 da
manhã, o silêncio era quase sepulcral. Também não me constou que nesta primeira
noite tivesse havido excessos. É certo que, pela primeira vez, a Câmara
Municipal, pressionada pelos munícipes, ao estabelecer as 4h00 como limite dos
espectáculos, colocou um freio no barulho intenso que se vivia no recinto do “Choupalinho”
e, de certo modo, veio moralizar uma alegoria que aos olhos de todos era
selvagem e imparável –e que muito contribuiu para animosidade, quase geral, que
sentimos hoje contra as festas académicas.
Em jeito de balanço final,
poderemos interrogar: são ou não importantes as festas para a cidade? Penso que
não se contesta a sua importância, porém, para persistirem no tempo, terão de
conquistar todos os citadinos. Se continuarmos a considerá-las um corpo
estranho dentro de nós, mais tarde ou mais cedo, serão reduzidas até à mais
ínfima resiliência, pela incapacidade de amortecer o choque, e morrerão. E se
isso vier a acontecer acabará por ser muito mau para todos. É preciso preservar
as tradições. É a nossa identidade histórica que está em causa.
2 comentários:
Antes demais parabéns pelo seu blog.
Em relação a esta nota em particular, estou completamente de acordo consigo.
Ainda não cheguei à casa dos trinta e sinto que está nova geração nada tem a ver com a minha.
Quanto as festas académicas se são importantes para a cidade, sem dúvida, mas nem são aproveitadas devidamente no aspecto de criar infraestruturas que levem pais/familiares de estudantes a permanecer mais tempo na cidade para acompanhar as festividades, não só do cortejo.
Relativamente as noites do parque, desde pequena que me recordo que chegava esta data e sabia que ia passar uma semana mal dormida, moro na zona do Norton de Matos e para mim é insuportável estes dias, ruído extremo para além das 4h da manhã (algo que falavam em abolir este ano mas continua) e depois os "estudantes" que não tem bom senso ao ir para casa. Já tive os meus desvarios mas nunca desrespeitei o descanso dos outros.
Ao mudarem a tradição do dia do cortejo para domingo foi algo que veio trazer as pessoas desalento em relação a comemoração destas festas.
Muito obrigada pela visita, Rita. O cumprimento em relação ao blogue é recíproco. O seu também é muito arejadinho e mais leve. Penso, deve ter a ver com as nossas idades -o meu mais pesado, com textos carregados de preocupação com o futuro. O seu, mais leve, muito mais leve -porque deixou de escrever já há dois anos. Se calhar, está na altura de recomeçar, não? Manter um blogue é uma actividade cívica. Bem sei que custa muito, mas é mesmo um serviço público. Pense nisso -se permite.
Abraço.
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