(Imagem da Web)
Como ressalva de interesses, e
antes de prosseguir, vou dizer que, sendo filho de gente muito humilde, para
subir na escala social do bem-estar, passei a vida a pedir. Estranhamente,
vá-se lá saber porquê, tive sempre uma inusitada dificuldade em conseguir os
meus intentos. Aceitei sempre este facto com optimismo lusitano, assim no
género de que seria o destino a testar-me nestas dificuldades –a propósito, há
cerca de 25 anos li uma frase muito interessante, de Samora Machel, o malogrado
ex-presidente da República de Moçambique, que nunca me esqueci: “Deus cria
dificuldades a quem crê ter capacidade para as ultrapassar”. Tive sempre tantas
contrariedades como assim, por exemplo: na minha aldeia, próximo de Luso, havia
uma família abastada, sem filhos, que ainda estava ligada por consanguinidade ao
meu pai, o senhor Matos, e um dos mais ricos do lugar. Então, quando eu era miúdo e até adolescente, este
homem, que emprestava dinheiro a juros, o chamado onzeiro ou onzeneiro,
implicava muito comigo, assim no género: “ó toino, tu és diferente, tu és muito
inteligente, tu irás longe na vida. Se eu puder, vou ajudar-te”. E eu guardei
sempre aquilo na memória como reserva para uma ocasião. Então, tinha eu 25
anos, em 1982, pensei em estabelecer-me por conta própria com um café. Precisava
de 250 contos, 1250 euros hoje, mas não tinha um tostão. Previamente fiz os
meus planos para os conseguir em duas pessoas. Um seria um meu tio que vivia
desafogadamente e outro seria o senhor Matos –este que, antecipadamente, dava
por certo que me emprestaria facilmente metade da verba pretendida. Então, provido com um cheque, lá fui bater à sua porta para ver se me financiava, no
mínimo, 100 contos. Entrei e, quando me viram, fizeram uma grande festa, “olha
o Toino, então como é que vai a tua vida, rapaz?”. Lá fui contando que ia bem e
que me ia estabelecer por conta própria com um café –eu já tinha feito o
negócio verbalmente. Lá lhes fui dizendo que considerava que era a minha
oportunidade, assim e mais assado, até que cheguei ao cruzamento que eles já
teriam adivinhado há muito, a necessidade de um empréstimo. E então lá veio a
frase martelada para os pobres sem garantias: “ó dianho, não contava contigo
hoje, apanhaste-me desprevenido. Se tivesses vindo ontem… fiz aqui um vultuoso
empréstimo”. Depois de muito suplicar, e depois de o meu pai lá aparecer,
emprestou-me então 80 contos em notas, com a promessa de mais tarde, “quando
pudesse”, me entregaria os outros 20 –curioso é que deixei lá logo um cheque
emitido com o montante de 100 contos. Entretanto, passado pouco tempo, o senhor
Matos veio a falecer e já não concluiu.
Dali fui ao meu tio, que me
conhecia muito bem, e novamente a exposição do negócio que estava em vias de
concretizar e precisava de, ao menos, 100 contos. Se mos pudesse emprestar…
Durante duas horas, repito duas horas, ele colocou-me de rastos no chão frio da
calçada assim com um discurso deste tipo: “como é que pagas? Tu não tens nada! Além
disso estás casado e com dois filhos, é mais que conclusivo não dar certo. E se
te correr mal o negócio? Lá fico eu a arder. É assim não é?”. Eu lá ia
argumentando conforme podia, mas achando que as minhas palavras se perdiam no
caminho curto entre mim e ele. Ou seja, ele não me ouvia. Estava a ficar sem
forças para o contraditório. Até que lhe atirei: olhe, tio, ali fora está o
único bem que possuo, um mini usado, um carro que me custou 50 contos. O tio
empresta-me os 100 contos, o carro fica aí até eu pagar, se eu não cumprir o
senhor só perde 50. Foi então que lá do fundo da cozinha uma voz de mulher se
soergueu cortante: “olha lá, não achas que já chega de estares a calcar o
rapaz? Vai lá buscar o cheque. Anda lá!” –era a esposa e minha tia Natividade,
que me salvou “in extremis”. Curiosamente este meu tio morreu solitário e de forma quase indigente de carinho. Enfim, as voltas que a vida dá!
Cheguei a Coimbra só com 180
contos. Faltavam 70. O meu sogro, que sabia das minhas pretensões, pai de 9
filhos vivos, que sempre trabalhou para lhes dar o melhor, vivia do seu único
ordenado e, naturalmente, não tinha poupanças. Mal me viu, interrogou para
saber se tinha conseguido o dinheiro. Argui que me faltavam setenta contos. “Não
te preocupes, disse-me, eu vou emprestar-tos. Mais logo tos darei. E assim foi,
passadas umas horas entregou-mos em mão –só tempos mais tarde, vim a saber que
tinha ido ao talho pedir.
Como a escritura do café seria
passados três meses, e necessitava de 1000 contos, numa via sacra, corri todos
os bancos da cidade e nenhum me emprestou um cêntimo –como é que me
desenrasquei, perguntará o leitor? Não vou contar para não me tornar enfadonho,
mas foi o destino que veio em meu auxílio, como a escritura, por imperativos
legais, só pode ser realizada dois anos mais tarde, trabalhando afincadamente o
mais que pude, acabei por não precisar dos bancos.
Ao longo da minha vida
empresarial, mesmo já com provas dadas, tive sempre um incompreensível impedimento
em conseguir crédito bancário. Até para a minha casa, em 1990, não consegui.
Hoje há distância de 20 anos, vejo que ainda bem. Acabei por fazer o negócio
directo com o dono do prédio. Com este pouco natural embargamento acabei por
ter um grande respeito por quem pede desde que a sua fundamentação seja
legítima –ainda hoje tenho muita dificuldade em pedir para mim. Já se for para
outros nada me custa. Faço isso com a maior das naturalidades.
Tudo isto, este arrazoado para
dizer que a condição de pedir está completamente prostituída e esvaziada de
dignidade. Há cerca de 25 anos, exactamente pelas minhas contrariedades,
escrevi ao gerente do BES, Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa, um
desabafo onde enfatizava que “o pedir é um acto solene marcante, pessoal, de
grande significado e intrínseco para quem pede. O que implica que quem
empresta, ou não, respeite quem solicita e decida de forma rápida, de modo a
tornar o menos penoso a circunstância”.
Hoje, quem está numa loja
comercial, apercebe-se de que o pedir passou a ser a norma e não a excepção. O “pedir”
está convertido em "profissão" rasca, o ir na corrente, muito pior do que uma prostituta que vende
o corpo mas assume-o com dignidade. O dia-a-dia de um estabelecimento, desde o
telefone a retinir, a rogar para a associação de nem sei quê, até às visitas
pessoais, é de manhã à noite. A fundamentação para o facto vai desde “esqueci-me
da carteira em casa e não tenho dinheiro para o bilhete de comboio. Tenho 5
filhos e não tenho comer para lhes dar. Morreu-me o meu pai e não tenho dinheiro
para ir à aldeia. Ando a ver se arranjo dinheiro para ir para Espanha e lá ver
se arranjo trabalho”, etc., etc., etc.
Em suma, estamos transformados
num país de pedintes onde qualquer dia nem para os casos verdadeiros de aflição
qualquer um de nós responderá. Hoje, ninguém quer sacrificar-se por nada. É mais fácil estender a mão. Este facilitismo de pedir, este vender a alma a
qualquer preço, onde a vergonha desapareceu, está transformado numa praga
social.
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