(Imagem da Web)
São sete horas da manhã. Como
todos os dias, acordo com o retinir da campainha do despertador. De segunda a
sábado é sempre assim. Às oito horas, impreterivelmente, tenho de abrir o café.
Se não o fizer, já sei que os meus clientes habituais vão bater-me à porta de cinco
em cinco minutos e interrogar: “está doente, senhor João? Ai não? Ainda bem!
Sabe, é que como costuma ser pontual, até pensei…” –Bolas! Um empresário de hotelaria não pode atrasar-se nem um minuto sequer. Às vezes dou comigo a pensar
para quê este meu frenesim na abertura da porta. Bem sei que é o pessoal que trabalha
no comércio, entram às nove. Mas hoje, com esta crise, nesta hora primeira do
meu dia, estou a vender meia-dúzia de cafés –só para comparar, há uma década
eram cerca de 70 e há vinte anos tirava mais de uma centena. Nesses tempos,
para além das bicas e dos muitos galões, ainda saíam muitas torradas, sandes de
fiambre e queijo, tostas, e muitos pastéis. Hoje, durante a primeira hora, ninguém
me pede uma sanduiche e muito menos um bolo.
Tantas vezes que dou por mim a
olhar para a máquina de café, que está ligada a consumir electricidade desde as
07h30 –liga meia-hora antes para aquecer- até à meia-noite, hora a que encerro
todos dias, e penso se valerá a pena continuar neste negócio. Porque não é só
esta máquina que me consome a alma e trabalha para a EDP, é também uma bancada
frigorífica de dois metros, uma vitrina para a pastelaria, um forno ondo cozo
os “Panik’s”, a máquina de lavar louça, a arca dos gelados, o moinho de café, a
máquina dos sumos, o micro-ondas, a torradeira e ainda o secador de mãos, na
casa de banho. A minha factura mensal de energia, em média, por mês anda sempre
a rondar os 400 euros, isto durante o inverno, porque no verão, como ligo o ar
condicionado, vai aos 500.
É certo que sempre gostei da
indústria hoteleira, mas hoje, perante os tempos conturbados que vivemos,
penso muitas vezes em renunciar. Tenho à volta de 50 anos, mas estou muito
cansado. Trabalho desde criança. Mas o pior, e é isso que deu cabo da minha saúde,
é este desgaste diário. Tenho a cervical feita “num oito”. Devido à pressão
diária, tenho hipertensão e sofro de ansiedade. Tenho reumatismo e já coxeio um
pouco da perna esquerda.
Excepto o domingo, que aproveito
para descansar, diariamente faço 17 horas. Todos os dias saio do meu
estabelecimento por volta da uma da manhã. Fico sempre uma hora para carregar
os frigoríficos e limpar a casa para no dia seguinte estar pronta a abrir.
Repare-se que são dois dias num só. Estranhamente a minha clientela não dá por
isso. Estão habituados a que eu tenha um constante sorriso colado ao rosto,
mesmo que esteja a arder de tristeza e solidão por dentro –também ai de mim se
mostrar má cara a alguém.
Depois, hoje é muito difícil
estar a trabalhar num café. As pessoas, numa maneira geral, não têm respeito
por quem os está a servir. É o café que está curto de mais, ou cheio, ou frio,
ou muito quente; é o pastel de nata que está descorado, não tem sabor; é o
croissant que está duro; o “Panik” que está mal-cozido. É como se naquela reclamação estivesse contida a frustração da vida de cada um. Ninguém se lembra que,
no meu pequeno espaço para trás e para a frente, eu ando ao dia dezenas de
quilómetros. E tantos passos que me poderiam evitar, sobretudo quando me pedem
um café. Levo à mesa o serviço e a seguir pedem-me um copo de água, e lá vou eu
refazer o mesmo trajecto. Que raio! Porque não me pediram tudo de uma vez só?
Mas, como serviçal a tempo inteiro, tenho de engolir em seco… e, sem reclamar, servir –muitas vezes penso
que me julgam de uma classe inferior, assim uma espécie de escravo para todo o
serviço. Bom, é certo que noutros tempos era pior, mas, nessa altura, não me
importava tanto porque era compensatório. Hoje não!
E os bêbados que, tantas vezes, tenho de aturar? À força da minha experiência, acho que me poderiam dar o
canudo de psicologia. O que eu faço para não haver violência. Contam-me a vida
toda. E eu, como padre de paróquia, ouço solenemente. Sou mesmo obrigado a ouvir,
porque qualquer badameco, que não vale um cêntimo furado, com um copo a mais, é uma arma
de guerra dentro de uma tasca. Julga-se o Stalone, o “Rambo”. E para quem é que
eles viram as decepções lá de casa, quando a mulher os chateia? Evidentemente
que para mim, que sou o dono do café, e que para eles sou alguém que se parece
com um saco de boxe.
Depois há duas coisas que me
consomem o espírito e dão comigo em doido. A primeira é qualquer um, miúdo e
graúdo, chegar ao balcão e dizer: “queria um copo de água!”. Nem por favor, nem
nada que o valha. Bebem, viram costas, e nem um obrigado. Às vezes, quando são
adolescentes, até lhes atiro: olhe lá, menino, lá em casa o seu paizinho não o
ensinou a dizer obrigado? Mas para que estou eu com esta retórica se o puto
olha para mim, da mesma forma que olha para um menhir, e, como não me
entendesse, nada diz. Embirro com isto! É que todos acham que eu tenho
obrigação de servir copos de água gratuitamente. Esquecem que aqui pago tudo
com língua de palmo, desde a água até à electricidade –sim porque uma pessoa
serve, mas a seguir o copo vai ser lavado na máquina. E quem suporta isto? O
problema é que este mau vício está de tal maneira entranhado nos adultos que,
numa incompreensível injustiça, passam a mesma mensagem aos filhos. Quer dizer,
o Governo passou o IVA de 13 para 23 por cento, ou seja, cada vez me aperta
mais na minha agonia, mas, como se fosse pouco, o público, a clientela, talvez
pensando que eu tenho cara de São Sebastião, de mártire, cada vez me quer lixar
mais. Porque há uma coisa que é preciso esclarecer: ao balcão, e sem que me
peçam mais nada de consumo, sirvo, todos os dias, à volta de uma centena de
copos de água –já não estou a escrever sobre aqueles que acompanham o café. Mas
ninguém se importa. Tanto faz ser o “Zé Malaqueco”, que anda a polir esquinas
ali na praça, como o senhor doutor, que até tem um bom ordenado. Nenhum deles
se preocupa com o meu servir. Lá nas cabecinhas pensantes deles, e numa
tradição de antanho, do tempo em que os chatos andavam de avião, eu tenho de
continuar a servir de borla. Alguém questiona o facto de todos os chafarizes de
água pública terem desaparecido? Porque foram extintos? Exactamente para as
autarquias não pagarem a água. Quer dizer, eles, as câmaras, sendo um serviço
público, podem fechar as torneiras e recusar-se, e eu, sendo privado, sou
obrigado a servir à “borliú”. Está certo isto? Que tipo de justiça geral pugna
o que reclama dos copos de água poderem vir a serem pagos?
A segunda coisa que até se me
arrepela os cabelos é a ida à casa de banho. Tenho dois tipos de clientela da
sanita. O primeiro é o cliente da casa, que consome e, naturalmente, usufrui
destes serviços. O segundo é o transeunte diário, que passa na rua, sente-se
apertado, entra, em grande velocidade atravessa a sala, vai direito ao mictório…
("txxee", a fazer chichi)… carrega no fluxómetro, para fazer desaparecer o odor
da urina, abre a torneira do lavatório… ("txxee", a torneira aberta)… ensaboa as
mãos com o sabão líquido que me custa uma fortuna –e a torneira continua a
debitar… "txxee"- passa-as pela água, e a seguir liga o secador de mãos…
("zooommm", é o barulho da máquina). Sai, agora mais calmo, porque está menos
ansioso, olha em frente, e ala que se faz tarde. Nem obrigado, nem bom dia, nem
boa tarde, nem até amanhã, se deus Nosso Senhor quiser. Lá no pensar dele a
casa de banho para os meus clientes é assim uma espécie de
parceria-público-privada, com uma diferença: quem paga a conta é o privado, que sou eu.
Este raciocínio das casas de banho é o mesmo dos copos de água. Ninguém se
preocupa com os gastos que dão ao dono do café, que por acaso sou eu –se fosse
dele, tenho a certeza, o comportamento seria completamente diferente, porque só
quem sofre sente. Já alguém pensou na razão de na cidade haver pouquíssimas
sentinas? Porque será? A razão é a mesma dos chafarizes: é preciso pagar. Aqui reside o
verdadeiro busílis destas questões.
Agora diga-me, você leu a
reportagem da revista Visão, sobre a cobrança de 50 cêntimos por servir um copo de
água, no Algarve, e até se indignou muito contra o dono do café, e até lhe
chamou miserável. Agora, depois de ler este meu desabafo, continua a pensar do
mesmo modo?
Se continua, desculpe que lhe diga,
mas você é mesmo um cabeça-dura de egoísta.
TEXTO RELACIONADO
"Um copo de água, um palito e o jornal do dia"
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