quarta-feira, 23 de maio de 2012

O HOMEM DO CAFÉ

(Imagem da Web)


 São sete horas da manhã. Como todos os dias, acordo com o retinir da campainha do despertador. De segunda a sábado é sempre assim. Às oito horas, impreterivelmente, tenho de abrir o café. Se não o fizer, já sei que os meus clientes habituais vão bater-me à porta de cinco em cinco minutos e interrogar: “está doente, senhor João? Ai não? Ainda bem! Sabe, é que como costuma ser pontual, até pensei…” –Bolas! Um empresário de hotelaria não pode atrasar-se nem um minuto sequer. Às vezes dou comigo a pensar para quê este meu frenesim na abertura da porta. Bem sei que é o pessoal que trabalha no comércio, entram às nove. Mas hoje, com esta crise, nesta hora primeira do meu dia, estou a vender meia-dúzia de cafés –só para comparar, há uma década eram cerca de 70 e há vinte anos tirava mais de uma centena. Nesses tempos, para além das bicas e dos muitos galões, ainda saíam muitas torradas, sandes de fiambre e queijo, tostas, e muitos pastéis. Hoje, durante a primeira hora, ninguém me pede uma sanduiche e muito menos um bolo.
Tantas vezes que dou por mim a olhar para a máquina de café, que está ligada a consumir electricidade desde as 07h30 –liga meia-hora antes para aquecer- até à meia-noite, hora a que encerro todos dias, e penso se valerá a pena continuar neste negócio. Porque não é só esta máquina que me consome a alma e trabalha para a EDP, é também uma bancada frigorífica de dois metros, uma vitrina para a pastelaria, um forno ondo cozo os “Panik’s”, a máquina de lavar louça, a arca dos gelados, o moinho de café, a máquina dos sumos, o micro-ondas, a torradeira e ainda o secador de mãos, na casa de banho. A minha factura mensal de energia, em média, por mês anda sempre a rondar os 400 euros, isto durante o inverno, porque no verão, como ligo o ar condicionado, vai aos 500.
É certo que sempre gostei da indústria hoteleira, mas hoje, perante os tempos conturbados que vivemos, penso muitas vezes em renunciar. Tenho à volta de 50 anos, mas estou muito cansado. Trabalho desde criança. Mas o pior, e é isso que deu cabo da minha saúde, é este desgaste diário. Tenho a cervical feita “num oito”. Devido à pressão diária, tenho hipertensão e sofro de ansiedade. Tenho reumatismo e já coxeio um pouco da perna esquerda.
Excepto o domingo, que aproveito para descansar, diariamente faço 17 horas. Todos os dias saio do meu estabelecimento por volta da uma da manhã. Fico sempre uma hora para carregar os frigoríficos e limpar a casa para no dia seguinte estar pronta a abrir. Repare-se que são dois dias num só. Estranhamente a minha clientela não dá por isso. Estão habituados a que eu tenha um constante sorriso colado ao rosto, mesmo que esteja a arder de tristeza e solidão por dentro –também ai de mim se mostrar má cara a alguém.
Depois, hoje é muito difícil estar a trabalhar num café. As pessoas, numa maneira geral, não têm respeito por quem os está a servir. É o café que está curto de mais, ou cheio, ou frio, ou muito quente; é o pastel de nata que está descorado, não tem sabor; é o croissant que está duro; o “Panik” que está mal-cozido. É como se naquela reclamação estivesse contida a frustração da vida de cada um. Ninguém se lembra que, no meu pequeno espaço para trás e para a frente, eu ando ao dia dezenas de quilómetros. E tantos passos que me poderiam evitar, sobretudo quando me pedem um café. Levo à mesa o serviço e a seguir pedem-me um copo de água, e lá vou eu refazer o mesmo trajecto. Que raio! Porque não me pediram tudo de uma vez só? Mas, como serviçal a tempo inteiro, tenho de engolir em seco…  e, sem reclamar, servir –muitas vezes penso que me julgam de uma classe inferior, assim uma espécie de escravo para todo o serviço. Bom, é certo que noutros tempos era pior, mas, nessa altura, não me importava tanto porque era compensatório. Hoje não!
E os bêbados que, tantas vezes, tenho de aturar? À força da minha experiência, acho que me poderiam dar o canudo de psicologia. O que eu faço para não haver violência. Contam-me a vida toda. E eu, como padre de paróquia, ouço solenemente. Sou mesmo obrigado a ouvir, porque qualquer badameco, que não vale um cêntimo furado, com um copo a mais, é uma arma de guerra dentro de uma tasca. Julga-se o Stalone, o “Rambo”. E para quem é que eles viram as decepções lá de casa, quando a mulher os chateia? Evidentemente que para mim, que sou o dono do café, e que para eles sou alguém que se parece com um saco de boxe.
Depois há duas coisas que me consomem o espírito e dão comigo em doido. A primeira é qualquer um, miúdo e graúdo, chegar ao balcão e dizer: “queria um copo de água!”. Nem por favor, nem nada que o valha. Bebem, viram costas, e nem um obrigado. Às vezes, quando são adolescentes, até lhes atiro: olhe lá, menino, lá em casa o seu paizinho não o ensinou a dizer obrigado? Mas para que estou eu com esta retórica se o puto olha para mim, da mesma forma que olha para um menhir, e, como não me entendesse, nada diz. Embirro com isto! É que todos acham que eu tenho obrigação de servir copos de água gratuitamente. Esquecem que aqui pago tudo com língua de palmo, desde a água até à electricidade –sim porque uma pessoa serve, mas a seguir o copo vai ser lavado na máquina. E quem suporta isto? O problema é que este mau vício está de tal maneira entranhado nos adultos que, numa incompreensível injustiça, passam a mesma mensagem aos filhos. Quer dizer, o Governo passou o IVA de 13 para 23 por cento, ou seja, cada vez me aperta mais na minha agonia, mas, como se fosse pouco, o público, a clientela, talvez pensando que eu tenho cara de São Sebastião, de mártire, cada vez me quer lixar mais. Porque há uma coisa que é preciso esclarecer: ao balcão, e sem que me peçam mais nada de consumo, sirvo, todos os dias, à volta de uma centena de copos de água –já não estou a escrever sobre aqueles que acompanham o café. Mas ninguém se importa. Tanto faz ser o “Zé Malaqueco”, que anda a polir esquinas ali na praça, como o senhor doutor, que até tem um bom ordenado. Nenhum deles se preocupa com o meu servir. Lá nas cabecinhas pensantes deles, e numa tradição de antanho, do tempo em que os chatos andavam de avião, eu tenho de continuar a servir de borla. Alguém questiona o facto de todos os chafarizes de água pública terem desaparecido? Porque foram extintos? Exactamente para as autarquias não pagarem a água. Quer dizer, eles, as câmaras, sendo um serviço público, podem fechar as torneiras e recusar-se, e eu, sendo privado, sou obrigado a servir à “borliú”. Está certo isto? Que tipo de justiça geral pugna o que reclama dos copos de água poderem vir a serem pagos?
A segunda coisa que até se me arrepela os cabelos é a ida à casa de banho. Tenho dois tipos de clientela da sanita. O primeiro é o cliente da casa, que consome e, naturalmente, usufrui destes serviços. O segundo é o transeunte diário, que passa na rua, sente-se apertado, entra, em grande velocidade atravessa a sala, vai direito ao mictório… ("txxee", a fazer chichi)… carrega no fluxómetro, para fazer desaparecer o odor da urina, abre a torneira do lavatório… ("txxee", a torneira aberta)… ensaboa as mãos com o sabão líquido que me custa uma fortuna –e a torneira continua a debitar… "txxee"- passa-as pela água, e a seguir liga o secador de mãos… ("zooommm", é o barulho da máquina). Sai, agora mais calmo, porque está menos ansioso, olha em frente, e ala que se faz tarde. Nem obrigado, nem bom dia, nem boa tarde, nem até amanhã, se deus Nosso Senhor quiser. Lá no pensar dele a casa de banho para os meus clientes é assim uma espécie de parceria-público-privada, com uma diferença: quem paga a conta é o privado, que sou eu. Este raciocínio das casas de banho é o mesmo dos copos de água. Ninguém se preocupa com os gastos que dão ao dono do café, que por acaso sou eu –se fosse dele, tenho a certeza, o comportamento seria completamente diferente, porque só quem sofre sente. Já alguém pensou na razão de na cidade haver pouquíssimas sentinas? Porque será? A razão é a mesma dos chafarizes: é preciso pagar. Aqui reside o verdadeiro busílis destas questões.
Agora diga-me, você leu a reportagem da revista Visão, sobre a cobrança de 50 cêntimos por servir um copo de água, no Algarve, e até se indignou muito contra o dono do café, e até lhe chamou miserável. Agora, depois de ler este meu desabafo, continua a pensar do mesmo modo?
Se continua, desculpe que lhe diga, mas você é mesmo um cabeça-dura de egoísta.


TEXTO RELACIONADO


"Um copo de água, um palito e o jornal do dia"

Sem comentários: