quinta-feira, 17 de maio de 2012

LEIA O DESPERTAR




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O DESPERTAR DESTA SEMANA


Para além  da coluna Memória: "Ágata de boa sorte", deixo também os textos "Reflexão: Um baque de silêncio", "Uma história repetida" e "Lancelote amputado".



MEMÓRIA: ÁGATA DE BOA SORTE

 Provavelmente, no dia 11 de julho de 1947, quando em Paris se reuniam delegados de 16 Nações para discutirem o Plano Marshal –um programa de auxílio à Europa, devastada pela Segunda Guerra Mundial e para a sua reconstrução económica, comparticipado pelos Estados Unidos e que visava, sobretudo, conter a expansão comunista vinda dos países de Leste- à mesma hora, na aldeia da Carapinheira, numa casa humilde, um choro de bebé quebrava a monotonia daquele casebre encantado e parecia reclamar das condições financeiras locais.
António Cruz, a criança a que me refiro, teve por destino nascer numa época económica muito difícil para Portugal. Os seus pais, iletrados e tal como a maioria do povo português, viviam da agricultura de subsistência. Não havia dinheiro para o essencial como era o vestir e o calçar. Daí se compreender que o Cruz, quando não andava descalço no verão, no inverno, calçava umas “chancas”, um calçado rudimentar aproveitado de outro já usado e com uma palma de madeira. Se a abastança sempre fora a esperança, a verdade é que a fome, como fantasma dos mais pobres, andava por lá a vigiar todos constantemente. Era a broa da mãe, cozida em forno de lenha, acompanhada por uma frugal sopa de feijão e couves, que ao almoço e à ceia era o tentear de um meio-sustento possível e necessário.

 
(Imagem da Web)

Da carne, por ser assídua de casa senhorial, na sua invisibilidade entre humildes, praticamente não rezava a história. O peixe, como nesse tempo era o mais acessível, vindo da cidade-praia, salgado em caixas de madeira e transportado numa camioneta de caixa-aberta, tinha de ser dividido em partes iguais com muito rigor pela prole.

(Imagem da Web)

É de supor que o Cruz seria um puto vivaço e inteligente e, fazendo comparações com as famílias mais endinheiradas da aldeia do concelho de Coimbra, muito cedo, ainda na escola primária –hoje chamada de básica- cedo se apercebesse que ali não se governava vida e almejasse dar o salto para o desconhecido. Logo que concluiu a 4ª classe, com água até à alma, foi trabalhar para os arrozais do Mondego a mondar a “milha”, uma erva daninha que crescia conjuntamente com o arroz. 

(Foto de Leonardo Braga)

Aos 13 anos veio trabalhar para a cidade para o café Nicola, na Rua Ferreira Borges, a troco de alimentação e algumas gorjetas que provinham do serviço de grumete –uma tarefa preenchida nos recados e transporte de serviços pedidos de cafetaria para os consultórios em redor. Aos 14 anos, com o aval do proprietário do conhecido café, o senhor Abelha, matriculou-se na Escola Avelar Brotero, num curso comercial noturno. Porém, quem sabe se com receio de ter mais seguidores no estabelecimento, ou não, o dono depressa quis emendar a vontade através de coação psicológica e quando chegava a hora de saída, por volta das 19h00, era comum ouvir-se, alto e bom som, a sua lamúria: “que mal fiz eu a Deus para autorizar este gajo a estudar?!”. De tanto receber esta frase martelada em forma de descontentamento, acabou por sair um ano depois. 

Foi então para a mesma rua, para a ourivesaria Cruz, onde, a trabalhar, para além de ter concluído o Curso Comercial, na Escola Brotero, com 16 valores, naquela loja de sonhos rebatidos no balcão, aprendeu o “bê-à-bá” relativo ao toque de tudo o que brilha em ouro e prata, e ali se manteve durante 20 anos.
Em 1981, numa época de profunda crise económica, em que os juros bancários, para além de ultrapassarem os 30 por cento eram postecipados, descontados antecipadamente no ato de cedência do empréstimo, António Cruz, estabeleceu-se por conta própria com a ourivesaria Ágata, nas Escadas de São Tiago.


Em 2000, na mesma Rua de Ferreira Borges e próximo da sua recordada escola de vida, a ourivesaria Cruz, tomou de trespasse uma antiga barbearia e do espaço fez uma espetacular joalharia. O motivo foi o facto de um dos seus dois filhos, ambos licenciados em gestão, ter decidido abraçar a profissão da arte de comercializar.
Atualmente, com o desmesurado aumento dos metais preciosos, será que a ourivesaria terá futuro? Responde António Cruz: “Sim, não tenho dúvida que tem futuro. Quando se quer presentear alguém qual é o artigo que vem imediatamente à lembrança? Pois claro que é o ouro. É certo que, enquanto comerciantes, estamos todos a atravessar um período muito difícil. Mas, mesmo assim, felizmente e graças a Deus, estou a vender relativamente bem. Estou convencido de que vale a pena continuar a trabalhar nesta área sobretudo para quem se direcionar para a classe média-alta, que, diga-se, também está com alguns problemas, mas sempre se vai aguentando. Laborar com a classe média-baixa, neste momento, é mais complicado, está tudo endividado.”



E a Baixa, como é que é? Vale a pena continuar a remar contra a maré? Interrogo. “É óbvio. Tenho a certeza! Neste momento está sem presente, mas, a curto-médio-prazo, vai ter um grande futuro. A Baixa, agora, está muito em baixo. É preciso tratar da sua reconstrução e trazer gente nova para cá viver –quando isso acontecer os indigentes tornar-se-ão menos notados.
Quando reconquistar a antiga dignidade perdida vai crescer e projetar-se para o mundo inteiro –já viu quando a Alta e a Baixa forem reconhecidas como património da humanidade, pela UNESCO? Repare, é a sala de visitas da cidade, há aqui um imenso legado de memória. Claro que haverá muito a fazer, sobretudo pelo turismo. É preciso integrar o religioso, o comercial, o arquitetónico e o monumental. É necessário, por parte da autarquia, tomar nos braços os investidores. É preciso que o executivo camarário explique muito bem aos munícipes as suas decisões –como, por exemplo, o facto de, há dias, ter vetado o hotel de charme no Bairro de Sousa Pinto. A informação não está a chegar com clareza. Seria bom que, nos casos de licenciamento de obras, a edilidade, em vez de “chumbar” sistematicamente, fosse proactiva e dissesse aos requerentes o que quer.
Há tanto para fazer! Temos todos de dar as mãos e sermos criativos. Você já viu que sendo Coimbra a cidade da rosa, não temos um grande roseiral?”


REFLEXÃO: UM BAQUE NO SILÊNCIO


 Esta semana, num episódio repetido exaustivamente na Baixa, a casa Ruben encerrou. Depois de muitas décadas a servir a cidade, o velho Rubem de 78 anos, o nosso camarada de milhares de dias, depois de uma vida de servidão, insolvente, parte sem glória e sem um único gemido de dor por parte de quem passa.
Nesta longa avenida de ciprestes deste cemitério de mortos-vivos, em que está transformado o comércio tradicional, em que nem sequer direito a epitáfio tem por legado, é preciso olhar para as campas rasas abertas. Uma delas será para nós.


UMA HISTÓRIA REPETIDA

(Foto de Leonardo Braga Pinheiro)

 Quem faz o favor de ler aqui as histórias de vida de muitos comerciantes que vou escrevendo, certamente, apercebe-se de imensos pontos comuns, de tal modo semelhantes que parecem escritas a papel químico. Provêm quase todos da aldeia esconsa, de um Portugal atrasado e anacrónico. São filhos de uma família paupérrima cujos pais eram analfabetos e viviam da agricultura. Andaram descalços e, no seu corpo, as pulgas fizeram festins. Todos concluíram a básica 4ª classe e, a seguir, da esperança fizeram uma ponte para uma vida melhor na cidade. Aqui, na urbe, cresceram sem afeto e ao deus dará, educando-se a si mesmos, tiraram o curso da aprendizagem da vida. A maioria deles, sonhadores, ambiciosos e pugnando ter o mesmo que outros, poucos, beneficiados da época, rompeu as mãos a subir a corda a pulso. Sempre a trabalhar, sem olhar ao esforço, estudaram de noite e, muitos deles, chegaram à Universidade. Sempre a trabalhar, algumas vezes noite e dia, conforme puderam, multiplicaram-se a educar os seus filhos, dando-lhes tudo o que nunca lhes foi proporcionado, incluindo a possibilidade de frequentarem o conservatório de música, choraram no primeiro dia que os seus herdeiros entraram na faculdade. Aprendendo a conviver nos interstícios da vida, pedindo aqui, rogando acolá, estabeleceram-se por conta própria e, durante décadas, foram o motor impulsionador nos centros das urbes.
Hoje, numa reviravolta ciclónica, como se o tempo insensível e sádico os quisesse castigar por um passado atapetado de espinhos que lhes rasgou a alma, estes heróis pouco reconhecidos pela cidade madrasta, que sempre os invejou, olhou de soslaio, tomou como enteados, campónios e rústicos, enredados numa teia sistémica na qual não contavam, progressivamente estão a perder tudo, incluindo a sua própria dignidade. Perante uma apatia de modorra, a raiar o criminoso, é injusto o que está acontecer a estas gerações fantásticas de 1930/1940/1950. Uma enorme salva de palmas para esta estirpe tão maltratada de comerciantes empreendedores.



LANCELOTE AMPUTADO


 Sabe-se lá por que razão, às vezes, o destino nos prega uma partida? Fosse pelo acaso, a verdade é que, na última edição, o texto de o “Cavalheiro de Lancelote” ficou “pendurado” no final. Ao Rogério Eloy as nossas desculpas. Aqui fica o último parágrafo: “Se Deus quiser, este vale de lágrimas irá ser um avatar, uma metamorfose para a divindade, para os nossos descendentes, que virão com muito amor e muita espiritualidade.”




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