Para além da coluna Memória: "Ágata de boa sorte", deixo também os textos "Reflexão: Um baque de silêncio", "Uma história repetida" e "Lancelote amputado".
MEMÓRIA: ÁGATA DE BOA SORTE
Provavelmente, no dia 11 de julho
de 1947, quando em Paris se reuniam delegados de 16 Nações para discutirem o
Plano Marshal –um programa de auxílio à Europa, devastada pela Segunda Guerra
Mundial e para a sua reconstrução económica, comparticipado pelos Estados
Unidos e que visava, sobretudo, conter a expansão comunista vinda dos países de
Leste- à mesma hora, na aldeia da Carapinheira, numa casa humilde, um choro de
bebé quebrava a monotonia daquele casebre encantado e parecia reclamar das
condições financeiras locais.
António Cruz, a criança a que me
refiro, teve por destino nascer numa época económica muito difícil para
Portugal. Os seus pais, iletrados e tal como a maioria do povo português, viviam
da agricultura de subsistência. Não havia dinheiro para o essencial como era o
vestir e o calçar. Daí se compreender que o Cruz, quando não andava descalço no
verão, no inverno, calçava umas “chancas”, um calçado rudimentar aproveitado de
outro já usado e com uma palma de madeira. Se a abastança sempre fora a
esperança, a verdade é que a fome, como fantasma dos mais pobres, andava por lá
a vigiar todos constantemente. Era a broa da mãe, cozida em forno de lenha,
acompanhada por uma frugal sopa de feijão e couves, que ao almoço e à ceia era
o tentear de um meio-sustento possível e necessário.
(Imagem da Web)
Da carne, por ser assídua
de casa senhorial, na sua invisibilidade entre humildes, praticamente não
rezava a história. O peixe, como nesse tempo era o mais acessível, vindo da
cidade-praia, salgado em caixas de madeira e transportado numa camioneta de
caixa-aberta, tinha de ser dividido em partes iguais com muito rigor pela
prole.
(Imagem da Web)
É de supor que o Cruz seria um
puto vivaço e inteligente e, fazendo comparações com as famílias mais
endinheiradas da aldeia do concelho de Coimbra, muito cedo, ainda na escola
primária –hoje chamada de básica- cedo se apercebesse que ali não se governava
vida e almejasse dar o salto para o desconhecido. Logo que concluiu a 4ª classe,
com água até à alma, foi trabalhar para os arrozais do Mondego a mondar a
“milha”, uma erva daninha que crescia conjuntamente com o arroz.
(Foto de Leonardo Braga)
Aos 13 anos
veio trabalhar para a cidade para o café Nicola, na Rua Ferreira Borges, a
troco de alimentação e algumas gorjetas que provinham do serviço de grumete –uma
tarefa preenchida nos recados e transporte de serviços pedidos de cafetaria
para os consultórios em redor. Aos 14 anos, com o aval do proprietário do
conhecido café, o senhor Abelha, matriculou-se na Escola Avelar Brotero, num
curso comercial noturno. Porém, quem sabe se com receio de ter mais seguidores
no estabelecimento, ou não, o dono depressa quis emendar a vontade através de
coação psicológica e quando chegava a hora de saída, por volta das 19h00, era
comum ouvir-se, alto e bom som, a sua lamúria: “que mal fiz eu a Deus para
autorizar este gajo a estudar?!”. De tanto receber esta frase martelada em
forma de descontentamento, acabou por sair um ano depois.
Foi então para a
mesma rua, para a ourivesaria Cruz, onde, a trabalhar, para além de ter
concluído o Curso Comercial, na Escola Brotero, com 16 valores, naquela loja de
sonhos rebatidos no balcão, aprendeu o “bê-à-bá” relativo ao toque de tudo o
que brilha em ouro e prata, e ali se manteve durante 20 anos.
Em 1981, numa época de profunda
crise económica, em que os juros bancários, para além de ultrapassarem os 30
por cento eram postecipados, descontados antecipadamente no ato de cedência do
empréstimo, António Cruz, estabeleceu-se por conta própria com a ourivesaria Ágata,
nas Escadas de São Tiago.
Em 2000, na mesma Rua de Ferreira
Borges e próximo da sua recordada escola de vida, a ourivesaria Cruz, tomou de
trespasse uma antiga barbearia e do espaço fez uma espetacular joalharia. O
motivo foi o facto de um dos seus dois filhos, ambos licenciados em gestão, ter
decidido abraçar a profissão da arte de comercializar.
Atualmente, com o desmesurado
aumento dos metais preciosos, será que a ourivesaria terá futuro? Responde
António Cruz: “Sim, não tenho dúvida que tem futuro. Quando se quer presentear
alguém qual é o artigo que vem imediatamente à lembrança? Pois claro que é o
ouro. É certo que, enquanto comerciantes, estamos todos a atravessar um período
muito difícil. Mas, mesmo assim, felizmente e graças a Deus, estou a vender
relativamente bem. Estou convencido de que vale a pena continuar a trabalhar
nesta área sobretudo para quem se direcionar para a classe média-alta, que,
diga-se, também está com alguns problemas, mas sempre se vai aguentando. Laborar
com a classe média-baixa, neste momento, é mais complicado, está tudo
endividado.”
E a Baixa, como é que é? Vale a
pena continuar a remar contra a maré? Interrogo. “É óbvio. Tenho a certeza!
Neste momento está sem presente, mas, a curto-médio-prazo, vai ter um grande
futuro. A Baixa, agora, está muito em baixo. É preciso tratar da sua
reconstrução e trazer gente nova para cá viver –quando isso acontecer os
indigentes tornar-se-ão menos notados.
Quando reconquistar a antiga
dignidade perdida vai crescer e projetar-se para o mundo inteiro –já viu quando
a Alta e a Baixa forem reconhecidas como património da humanidade, pela UNESCO?
Repare, é a sala de visitas da cidade, há aqui um imenso legado de memória.
Claro que haverá muito a fazer, sobretudo pelo turismo. É preciso integrar o
religioso, o comercial, o arquitetónico e o monumental. É necessário, por parte
da autarquia, tomar nos braços os investidores. É preciso que o executivo
camarário explique muito bem aos munícipes as suas decisões –como, por exemplo,
o facto de, há dias, ter vetado o hotel de charme no Bairro de Sousa Pinto. A
informação não está a chegar com clareza. Seria bom que, nos casos de
licenciamento de obras, a edilidade, em vez de “chumbar” sistematicamente,
fosse proactiva e dissesse aos requerentes o que quer.
Há tanto para fazer! Temos todos
de dar as mãos e sermos criativos. Você já viu que sendo Coimbra a cidade da
rosa, não temos um grande roseiral?”
REFLEXÃO: UM BAQUE NO SILÊNCIO
Esta semana, num episódio
repetido exaustivamente na Baixa, a casa Ruben encerrou. Depois de muitas
décadas a servir a cidade, o velho Rubem de 78 anos, o nosso camarada de
milhares de dias, depois de uma vida de servidão, insolvente, parte sem glória
e sem um único gemido de dor por parte de quem passa.
Nesta longa avenida de ciprestes
deste cemitério de mortos-vivos, em que está transformado o comércio
tradicional, em que nem sequer direito a epitáfio tem por legado, é preciso
olhar para as campas rasas abertas. Uma delas será para nós.
UMA HISTÓRIA REPETIDA
(Foto de Leonardo Braga Pinheiro)
Quem faz o favor de ler aqui as
histórias de vida de muitos comerciantes que vou escrevendo, certamente,
apercebe-se de imensos pontos comuns, de tal modo semelhantes que parecem
escritas a papel químico. Provêm quase todos da aldeia esconsa, de um Portugal
atrasado e anacrónico. São filhos de uma família paupérrima cujos pais eram
analfabetos e viviam da agricultura. Andaram descalços e, no seu corpo, as
pulgas fizeram festins. Todos concluíram a básica 4ª classe e, a seguir, da
esperança fizeram uma ponte para uma vida melhor na cidade. Aqui, na urbe,
cresceram sem afeto e ao deus dará, educando-se a si mesmos, tiraram o curso da
aprendizagem da vida. A maioria deles, sonhadores, ambiciosos e pugnando ter o
mesmo que outros, poucos, beneficiados da época, rompeu as mãos a subir a corda
a pulso. Sempre a trabalhar, sem olhar ao esforço, estudaram de noite e, muitos
deles, chegaram à Universidade. Sempre a trabalhar, algumas vezes noite e dia, conforme
puderam, multiplicaram-se a educar os seus filhos, dando-lhes tudo o que nunca
lhes foi proporcionado, incluindo a possibilidade de frequentarem o conservatório
de música, choraram no primeiro dia que os seus herdeiros entraram na
faculdade. Aprendendo a conviver nos interstícios da vida, pedindo aqui,
rogando acolá, estabeleceram-se por conta própria e, durante décadas, foram o
motor impulsionador nos centros das urbes.
Hoje, numa reviravolta ciclónica,
como se o tempo insensível e sádico os quisesse castigar por um passado
atapetado de espinhos que lhes rasgou a alma, estes heróis pouco reconhecidos
pela cidade madrasta, que sempre os invejou, olhou de soslaio, tomou como enteados,
campónios e rústicos, enredados numa teia sistémica na qual não contavam,
progressivamente estão a perder tudo, incluindo a sua própria dignidade.
Perante uma apatia de modorra, a raiar o criminoso, é injusto o que está acontecer
a estas gerações fantásticas de 1930/1940/1950. Uma enorme salva de palmas para
esta estirpe tão maltratada de comerciantes empreendedores.
LANCELOTE AMPUTADO
Sabe-se lá por que razão, às
vezes, o destino nos prega uma partida? Fosse pelo acaso, a verdade é que, na
última edição, o texto de o “Cavalheiro de Lancelote” ficou “pendurado” no
final. Ao Rogério Eloy as nossas desculpas. Aqui fica o último parágrafo: “Se
Deus quiser, este vale de lágrimas irá ser um avatar, uma metamorfose para a
divindade, para os nossos descendentes, que virão com muito amor e muita
espiritualidade.”
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