Para além da coluna Memória: "Brancal sem concorrência", deixo também os textos "Reflexão: Enterrar a cabeça na religião", "O sinal do Zorro" e "Rostos nossos (des)conhecidos: O Popeye".
MEMÓRIA: BRANCAL SEM CONCORRÊNCIA
Em 26 de abril de 1976, quando no
rescaldo das eleições legislativas se contavam os votos para uma maioria de
esquerda entre o PS e o PCP, e com a recente aprovação da Constituição da
República portuguesa se arrumava de vez com o PREC, Processo Revolucionário em
Curso, a Brancal, loja de lãs, na Rua Visconde da Luz, abria ao público na
cidade. Uma semana depois, na segunda-feira 3 de maio, entrava ao serviço Natividade
Oliveira, a funcionária que viria a ser a pedra de toque no futuro deste
estabelecimento comercial.
Nesses tempos idos, da década de
setenta, o pronto-a-vestir ainda era incipiente. Talvez por isso se entenda que
só na Baixa havia quase uma dúzia de casas a vender meadas. Eram a Bijoulan, a
Rostex, a Zéfios, a Casa Monteiro, o Capitão, as Teresas e outras que a nossa
memória já não lembra. Hoje, como símbolo de um tempo que passou –mas felizmente
nesta área está a voltar-, a Brancal é o único sítio onde se podem comprar
novelos em quantidade e de grande qualidade.
Mas, sendo assim, o que aconteceu
para nos nossos dias só restar a Brancal? Responde a Natividade: “é assim, como
sabe, nessa épocas de 1950 até 1985 –este último ano que considero ser o pico
das vendas- o rendimento disponível das famílias era escasso e, acima de tudo, havia
o costume de se fazerem camisolas à mão. Era um hábito cultural que se transmitia
de mães para filhas –também, talvez porque a roupa feita, vendida nas lojas,
ainda estava a dar os primeiros passos. Depois, sobretudo a partir de meados de
oitenta, o pronto-a-servir invadiu tudo –se reparar, nesta altura, começaram a
desaparecer as costureiras e os alfaiates-, e, por parte do consumidor, passou
a haver mais dinheiro. Para além disso, creio também que a televisão, enquanto
instrumento lúdico de serão, veio ajudar à festa. Então, naturalmente como se
começou a vender menos, por inerência, foram encerrando as fábricas de lãs pelo
país fora. No caso da Brancal é diferente, porque temos integração vertical,
isto é, somos fabricantes desde a fiação até à tinturaria e incluindo a
distribuição. Não temos intermediários. E para compensar, num vasto leque de
oferta ao público, temos cerca de 28 pontos de venda em Portugal. Embora de
grandes alicerces, é uma empresa familiar: os Brancais –é uma importante
família muito conhecida na Covilhã, onde estão localizadas as fábricas e outros
investimentos.”
A Natividade já não vê o patrão
há cerca de 12 anos. Implicará esta ausência numa redobrada confiança na
gerente? Interrogo. “Ora bem, não me caberia responder, no entanto sempre lhe
vou dizendo que tudo faço para merecer esta fidúcia. Ao longo destes 35 anos, entreguei-me
sempre totalmente de corpo e alma a esta causa. Procedo de modo igual como se o
negócio fosse meu. Deito-me a pensar na loja, sonho com ela, e acordo a pensar
nela. Às vezes, em brincadeira com o meu marido digo-lhe que tenho dois amores,
assim como o Marco Paulo, está a ver? Também é certo que não estou sozinha, de
dois em dois meses vem um supervisor perguntar o que é que preciso. É realmente
uma grande prova de confiança. Mas, passando a imodéstia, acho que a mereço.
Não tenho horas de saída; se necessário não vou almoçar e, posso dizer-lhe,
muitas vezes, para preparar as coisas para o dia seguinte, fico até altas horas
na noite.”
E, com esta crise, como é que
estão a correr as vendas? Questiono. “Graças a Deus, muito bem. A tradição está
a voltar outra vez e com muita força às lãs. Não sei bem, mas talvez pela
saudade, pela memória de outros tempos, ou, quem sabe, pelo prazer de oferecer
uma peça de roupa a um netinho, com a ternura de ter sido feita pela avó. O ano
transato foi um dos melhores de sempre. É um negócio garantido. No último Natal
tivemos muitos clientes a comprar uma meada com agulhas para oferecer na
quadra. Felizmente, mesmo nesta altura, não há mãos a medir. Tenho a sorte de
estar muito bem acompanhada pela Paula Costa, que é uma excelente colaboradora.
Entendemo-nos muito bem e fazemos uma boa equipa.
Sabe que temos muitos homens a
comprar para eles próprios confecionarem? É verdade. Conheço alguns que fazem
muito bem tricot. Temos muitos outros a adquirirem malhas e agulhas para
levarem para as esposas, mas ficam enrascados quando lhes perguntamos se a
agulha é sem ou com barbela –é a cabeça que a agulha tem.”
E como é que a Natividade vê a
Baixa atualmente? Pergunto. “Ai, senhor Luís, tenho muita saudade daqueles
sábados em que os transeuntes passavam carregados de sacos. Sempre que há
eventos por aqui e vejo muita gente vêm-me as lágrimas aos olhos. Dava tudo
para que se mantivessem as lojas abertas. Ainda agora, com o encerramento da
Casa Ruben, sendo sua vizinha, foi uma surpresa triste. Custou-me muito, mas
mesmo muito. Se, por acaso, este senhor ler este texto gostaria de lhe
transmitir o seguinte: muita força e coragem, senhor Ruben. Não tenho palavras
para lhe quantificar a felicidade que lhe desejo. Que Deus o acompanhe. O
senhor foi sempre uma ótima pessoa e deixa muitas saudades aqui na rua.”
REFLEXÃO: ENTERRAR A CABEÇA NA RELIGIÃO
(Imagem da Web)
Segundo a imprensa, neste 13 de
maio último, estiveram cerca de 300 mil pessoas no santuário de Fátima e foram
queimadas 31 toneladas de velas. Poderia começar por dizer que a religião é o
ópio do povo, tal como escreveu Karl Marx em 1844 –embora já tivesse aparecido
anteriormente em textos de Kant e de Feuerbach- mas não quero ir por aí de uma
forma tão linear. Antes de prosseguir, saliento que não estou a pôr em dúvida
as opções de cada um e muito menos a fé -esta, enquanto convicção de verdade
pessoal e indiscutível.
O que gostaria de refletir é que,
num ano de intensa crise como a que vivemos, neste acorrer em massa à Cova da
Iria, há muito de calculismo nas preces de quem lá esteve presente. “Eu vou,
acendo uma vela, rezo a Nossa Senhora e Ela, em troca, ajuda-me nos meus
negócios”, é assim que pensa o povo, na sua canonizada ignorância, e que
durante um dia, embrenhado no odor da cera e dos cânticos religiosos, se julga
senhor de todos os santos. No resto do ano, esquecendo tudo o que ouviu,
indiferente à injustiça e insensível à humanidade perene, está sempre pronto a
tramar alguém. Bem sei que historicamente sempre foi assim e, no futuro, sempre
assim será. A bondade, enquanto sentimento autêntico, é imanente ao homem e sai
de dentro, da alma, para fora. O que quer dizer que por muito puras e
bem-intencionadas, que sejam as mensagens cristãs, por exemplo, sendo sempre
extrínsecas, de fora para dentro, para a receber no coração, enquanto luz de
aperfeiçoamento espiritual, nem todos, poucos, se deixam alcançar.
O SINAL DO ZORRO
(Imagem da Web)
Na noite de quinta para
sexta-feira, da semana passada, três dependências bancárias, na Rua Ferreira
Borges e num raio de 20 metros, foram atacadas com um objeto contundente e
viram os seus vidros quebrados. Embora este assunto passasse ao lado da
imprensa nacional, e só fosse noticiado pela imprensa local, não deixa de ter a
sua ponta de mistério. Teria sido uma manifestação de revolta ou um simples ato
isolado de alguém que, ideológica e solidariamente, se coloca ao lado dos
muitos espoliados pela máquina bancária? Pessoalmente inclino-me para esta
hipótese.
Pode até parecer que concordo com
esta atitude. Não, não aceito de maneira nenhuma este género de reivindicação,
sobretudo, saliento, porque é anónima e cobarde. É violência gratuita e
apologista do caos. Porém, mesmo defendendo a ordem e a legalidade, e a
frontalidade que deve ser condição “sine qua non” de alguém que se preza, não
considero despiciendo escrever que este “atirar
e fugir”, este “sinal do Zorro”, apesar de inócuo, não deixa de ser uma
marca na forma imoral como os bancos estão a atuar na sociedade portuguesa.
Estas entidades, outrora denominadas de “instituições de crédito” que detinham
a responsabilidade do desenvolvimento social, hoje pouco diferem do
“onzeneiro”, de Gil Vicente, no século XVI e subsequentes, o agiota que
emprestando dinheiro a juros com garantia real, tudo fazia para, invocando
vários estratagemas, confiscar a propriedade ao devedor. Este sistema bancário
não serve o público em geral. Financiando-se no Banco Central Europeu a taxas
reduzidas, serve-se a si mesmo e o de localizados interesses, mas jamais o
povo.
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS
O “POPEYE”
É o António Simões da Silva,
mais conhecido pela alcunha carinhosa de "Popeye". É um passante
diário das nossas ruas estreitas. Tem uma leve demência, no entanto não deixa
de respeitar quem está. Sempre que o vejo, lembro-me do pai, homem de H grande
e já falecido. Com um farto bigode enrolado nas pontas, bombeiro-chefe de profissão,
andava sempre de chapéu. Um dia, para minha sorte, cruzou-se comigo. Sem nos
conhecermos, o seu testemunho foi fundamental num acidente de viação em que eu
estava envolvido. Apesar de já ter passado cerca de 25 anos, o seu exemplo
continua a servir-me de guia no dia-a-dia. De certo modo, neste meu singelo ato
de retratar o filho, fica o agradecimento e a homenagem ao velho Silva.
Sem comentários:
Enviar um comentário