“Permita-me
discordar de alguns pontos. É certo que o pequeno comércio ficou
abalado com as grandes superfícies, é certo que a crise agora é
desculpa para tudo e acredito que tem afetado mais uns do que outros.
No entanto, o comércio tradicional, e neste caso o da baixinha, tem
sofrido mais devido a tacanhez de alguns comerciantes. Ainda hoje
constatei isso, quando quis ir comprar uns sapatos e encontrei muitas
e muitas lojas encerradas à hora de almoço, quando a maioria das
pessoas é a essa hora que aproveitam para fazer as suas compras.
Fiquei igualmente desapontada quando entrei numa loja e passado uns
minutos a senhora desligou as luzes e disse que reabriam as 15h00. E
noutras situações, fui quase que "maltratada" quando
devia ser o oposto. Ainda sou das pessoas que gosto de fazer as
compras na Baixa, sou "fiel" a algumas lojas na Baixa pela
simpatia de atendimento, pelo facto de saber que estão abertas à
hora de almoço e por muitos outros motivos. Ora é claro que por
causa de uns pagam outros comerciantes que se esforçam, que lutam
por aquilo que é deles. Portanto, não creio que devemos atirar as
culpas à autarquia, ou o executivo. A culpa é na sua maioria dos
comerciantes. Tenho pena que esta loja, há tantos anos instalada na
Baixa, e que acho que até há pouco estava aberta à hora de almoço,
tenha fechado, mas duma forma geral a culpa das vendas não serem as
desejadas é muito por causa dos comerciantes, ou pelo menos de
alguns que estão sempre à espera que façam alguma coisa por aquilo
que é deles. Calhando o que a Baixa precisa é duma reciclagem de
alguns comerciantes. Bem-haja!”
(Funcionária
pública)
Vamos
lá ver se consigo fazer de advogado do diabo. Começo por te dizer,
cara amiga, que, a meu ver, tens razão quanto à rigidez dos
horários comerciais na Baixa. Na parte que me toca, e não estou
sozinho nesta questão de alargamento, há cerca de um ano e meio,
corri as lojas todas para tentar que todos abríssemos ao Sábado à
tarde. De um universo de 500 estabelecimentos, no primeiro dia
estiveram abertos 60, no segundo à volta de 40 e nos seguintes e,
tal como hoje, há volta de uma vintena.
No
meu modo de ver, nesta inamovibilidade, nesta prisão a velhos
conceitos, reside o verdadeiro “calcanhar de Aquiles” dos
homens do comércio. Ou seja, como é que se pode transmitir à
opinião pública uma situação de aflição de uma classe se a
maioria não mostra querer esforçar-se para mudar e conseguir novos
clientes. E então, perante esta rigidez, parecendo que estão todos
bem, as pessoas pensam da mesma forma que tu pensas.
Porém
há questões de pormenor que temos de interrogar:
-Por
que razão procede assim a maioria dos comerciantes?
-Há
ou não, de facto, situações de grande miséria no comércio?
-Serão
os comerciantes os grandes causadores desta situação?
-Serão
as autarquias culpadas da crise no comércio?
Vou
tentar responder à primeira pergunta: por
que razão procede assim a maioria dos comerciantes?
É
assim: hoje o universo comercial é um arquipélago de várias ilhas.
Há umas maiores que, quer por herança, quer porque a seu tempo,
souberam apostar no imobiliário e, como recebem várias rendas,
estão muito bem. Alguns destes, poucos, embora tenham várias lojas
encerradas, ainda detêm um ou outro estabelecimento aberto na Baixa,
mas como não estão dependentes do que se vende diariamente aqui
pouco lhes importa o movimento. Alguns têm lojas nos centros
comerciais. Falar com estas pessoas para alargarem os horários nem
vale a pena. Para eles a Baixa é uma espécie de gueto que
não interessa ao menino Jesus. É muito provável que se o comércio
continuar a cair, dentro de pouco tempo, encerrem tudo de vez por
aqui.
A
seguir vêm umas ilhotas sem grande significado, mas cujo espaço é
deles, na maioria dos casos por herança, portanto não pagam renda.
Como nunca se atiraram em grandes empreendimentos, porque nunca
precisaram, hoje estão sem dívidas e muito bem de vida.
Esforçam-se, sim, mas apenas no horário convencionado. Convencê-los
a irem mais além é impossível. Jamais!
A
seguir vem uma ilhota mais pequena formada por velhos comerciantes
que partiram do nada e, ao longo das décadas, foram subindo a corda
a pulso com muita dificuldade. Compraram o prédio onde detêm os
estabelecimentos e ainda hoje o estão a pagar ao banco. Alguns deles
embarcaram no “canto da sereia” do Procom, programa de
ajuda ao comércio, em 1996 e anos seguintes, e hoje estão
completamente aflitos. Para comprarem as suas colecções, utilizavam
contas caucionadas de valores médios na ordem dos 40 mil euros. Como
nos últimos dois anos a procura caiu, os bancos, vendo a
probabilidade de mais um incobrável, hipotecaram o património
destes mercadores e hoje, estes, têm um garrote no pescoço e em
vias de perderem tudo –este é a principal causa de insolvências
na Baixa. Como já estão muito debilitados físico e
psicologicamente e sem qualquer esperança no futuro, também não é
possível contar com eles. Esta é a geração mais maltratada do
comércio. Alguns deles estão a passar muito mal, com dificuldades
em comprar medicamentos, por exemplo.
Depois
umas ilhas pequenas, sem património, sem dinheiro e sem crédito,
cujo rendimento da loja é o seu único sustento –porém estão a
pagar uma renda exorbitante. É tudo calculado ao milímetro. A água
que se gasta, a luz da montra. Já há muito que não detêm
multibanco para não pagarem as elevadas taxas. Estas pessoas, embora
não se lhes dê valor, são verdadeiros heróis contorcionistas a
tentarem um equilíbrio impossível para trazerem a cabeça erguida.
Não alinham no alargamento de horários para não aumentarem as suas
despesas. Estão mesmo no limite e em muitos casos já estão a
passar mal em casa.
Passando
à segunda questão, há ou
não, de facto, situações de grande miséria no comércio?
Embora
já tivesse respondido em cima, reitero que sim. Há muitos, mas
mesmo muitos profissionais a passarem mal.
Passando
a outra interrogação: serão os
comerciantes os grandes causadores desta situação?
Antes
de prosseguir, vou começar com uma pergunta: serão os
funcionários públicos os causadores das próximas rescisões
contratuais e actuais cortes nos subsídios?
Por
aqui já vemos que culpar os comerciantes pela actual crise comercial
é falacioso, gratuito e até ofensivo. Os problemas do comércio
tradicional nas cidades radicam em vários factores, sem ordem de
prioridade:
-Elevada
oferta (dentro do próprio meio, com demasiadas lojas);
-Descentralização
e esvaziamento dos centros urbanos;
-Abertura
de muitos pontos de venda em vilas e cidades limítrofes;
-Alteração
profunda dos costumes; a não identificação dos jovens com o
comércio tradicional;
-Envelhecimento
do cliente-modelo do comércio de rua e não renovado pelos filhos,
que passaram a ser atraídos pelas grandes mecas do consumo;
-Abandono
de políticas de revitalização predial por parte das autarquias;
-Políticas
governamentais de arrendamento criminosas nos últimos 38 anos;
-Abertura
desmesurada de grandes áreas comerciais em torno da cidade, com
maior possibilidade de escolha e, em alguns casos, melhores preços
–estes impossíveis de praticar num pequeno negócio;
-Oferta
de estacionamento gratuito nas grandes superfícies –impossível de
competir nesta gratuitidade nas grandes cidades;
-Políticas
comerciais agressivas, de "terra queimada", com recurso
a”dumping", no grande comércio e visando destruir o pequeno;
-Grande
investida do comércio electrónico;
-Desmantelamento
da produção nacional, o que tem obrigado a não haver grande
escolha e todos venderem “made in China”, com a agravante de não
poderem competir em preços com as grandes cadeias;
-Embaratecimento
brutal no vestuário e no calçado, sobretudo na última década,
diminuindo os lucros nas vendas;
-Deslocalização de serviços administrativos para a periferia;
-Transferência de residentes pobres para bairros económicos dos arrabaldes;
-Deslocalização de serviços administrativos para a periferia;
-Transferência de residentes pobres para bairros económicos dos arrabaldes;
-Crise
estrutural (interna) a partir de 2002, com a procura a cair
vertiginosamente e esmagamento das margens de lucro;
-Crise
conjuntural (mundial) a partir de 2008, verificando-se uma deflação
acentuada no vestuário, sapatos, artigos decorativos e outros,
levando à falência em barda de pequenas e médias empresas.
E
última pergunta: Serão as
autarquias culpadas da crise no comércio?
Ora
bem, embora já tivesse respondido em parte em cima, sempre vou
adiantando que as autarquias também fazem parte do problema. Nos
últimos 20 anos, para mostrarem obra aos eleitores, os executivos,
na maioria dos casos, a troco de umas piscinas, uns pavilhões
multiusos, umas rotundas e mais uns acessos, alteraram os PDM’s
para permitirem a instalação de grandes áreas comerciais. Sem
terem em conta o impacto no equilíbrio de oferta, entregaram o
comércio tradicional numa bandeja de latão. Supõe-se que, enquanto
as obrigações para o comércio de rua nos últimos anos têm
aumentado, para estas grandes superfícies, pelo contrário,
continuarão a ser largamente beneficiadas
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