Para além da coluna "Memória: O Mercador da Ásia Central", deixo também um texto de "Reflexão" e a "Última Boleira"
REFLEXÃO: COMÉRCIO, QUE TRADIÇÃO?
A semana passada contei aqui a história da Casa Bonjardim. Por questões de espaço, muito ficou por dizer, nomeadamente algumas frases proféticas do Nuno Alberto Figueiredo, o actual dono deste reputado e vetusto estabelecimento. Dizia-me ele, no seu saber empírico, “com as alterações do NRAU, Novo Regime de Arrendamento Urbano, de 2006, sem julgamento, condenaram à morte o comércio tradicional. Agora, com as novas alterações legislativas previstas, vão fazer-lhe o funeral. O legislador ao querer, atamancadamente, ressarcir os proprietários de quase um século de injustiças, indo dos oito para o oitenta, acabou com o trespasse e condenou em vida, a morte lenta, milhares de comerciantes. Com esta, que irei encerrar proximamente, são quatro casas que entrego de mão-beijada ao proprietário. Entre o valor das obras que realizei e o trespasse que não recebi, perdi um milhão de euros!”
De facto, pegando nas sábias palavras do Nuno, dá para ver que o comércio tradicional não terá futuro, sobretudo a pequena empresa familiar com sede em contrato de arrendamento. Devido ao corte abrupto e sem pensar da transmissão, não haverá mais empresas que passem da primeira geração. Jamais voltaremos a ter casas comerciais com 150 anos, como algumas que já retratei aqui. Numa insensibilidade atroz, o legislador, para além de deliberadamente esquecer completamente que o trespasse era o pé-de-meia e a reforma do comerciante, mais grave, para além desta abertura da tumba da indigência, em extermínio, condenou o presente e o futuro de centenárias casas comerciais, que são autênticos museus interactivos, e que constituem um património de valor incalculável. Mas, “in extremis”, apesar de tudo para esta chacina, ainda resta um excepcional instrumento jurídico de recurso: a classificação, pelas autarquias, de interesse municipal. E os comerciantes? Se nem subsídio de desemprego têm direito, o que os espera? A depressão e o suicídio?
A ÚLTIMA BOLEIRA
Como relógio Suíço a marcar a hora, impreterivelmente, faça frio, chuva, ou Sol, todos os sábados se vê a senhora Mercês Leitão pela Baixa a bater nas portas das lojas: “ó menino, quer um bolinho de Ançã, hoje?”
A Dona Mercês tem 74 anos e é, de certeza, a última vendedeira de rua do fantástico bolo adocicado dos arredores de Coimbra e cuja receita nunca foi possível determinar a origem e desde há séculos que vai passando de geração em geração. Segundo a dona Mercês, “antigamente vinham muitos naturais de Ançã vender os afamados doces amassados à mão e cozidos em forno de lenha. Hoje, parece-me que a vender de porta a porta na cidade, e até que Deus queira, sou mesmo a última que resta de um tempo que não voltará mais. Comecei a vir para cá ainda era muito criança, juntamente com a minha mãe. Depois, aos 17 anos, iniciei-me a vender sozinha.”
É muito fácil ouvir-se esta espectacular interrogação, “tem cornos, dona Mercês?”, e a senhora responder: “Já não tenho, agora só mesmo dos redondos!”. O que acontece é que na diversidade dos excepcionais bolos de Ançã, cujos ingredientes são simples, levando na sua confecção ovos, farinha, açúcar e margarina, há três variedades: os bolos de ovo, o fino e o de cornos.
Que a saúde não a desampare e caminhe por estas pedras encantadas muitos e longos anos. A Baixa, para conservar o pitoresco de outros tempos, precisa muito de pessoas como a Dona Mercês.
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