Tenho dias que me parecem séculos carregados de moléstias, fome e dor. Perdido nos anéis do tempo, pareço circular ao acaso por entre montes e vales de solidão. Apesar de alguns ruídos de fundo as ruas parecem-me vazias de vida. Noto um silêncio conspirativo em tudo o que as envolve. Os transeuntes que as percorrem são autómatos comandados por uma missão pré-definida: todos procuram salvar o seu dia. Todos buscam algo, mas essencialmente um amor que os tire deste tédio em que se transformou este tempo de nuvens negras, de fantasmas esvoaçantes empurrados pelo vento. O amor continua a ser o bem mais rebuscado. Provavelmente, se calhar, ninguém o trocaria por uma grande fortuna. Nos seus rostos apáticos, sombreados, uns olhos cinzentos sem brilho, mostram um desalento palpável e patente. Ninguém ri. O sorriso, manifestação efusiva de felicidade, passou a ser ouro, quem o tem conserva-o com unhas e dentes, não vá ser roubado pelos carentes de alegria. Quando mostrados em público, são sempre poupados e minimizados em amostra de cartaz. Raramente se ouve uma estridente gargalhada.
A cidade não é mais a terra de oportunidades de antigamente, onde um necessitado mendicante, pela pedinchice ou através do esforço de trabalho, poderia vir a alcançar um estado de graça. Hoje, num fenómeno de anomia, destrutivo e antieconómico, o outrora remediado todos os dias empobrece mais e caminha, a passos largos, para a miséria. Um exército de indigentes diariamente tenta sensibilizar os que estão na borda do precipício em busca de uma moeda. Recorrendo a todas as lamúrias, e, quando estas não resultam, choram mesmo com lágrimas vivas em corrupio pela face árida e gretada. Contrariando outros tempos de glória, agora, contam as suas histórias de vida carregadas de melodrama e falhanço de perspectiva.
A maioria dos operadores, constituídos por comerciantes, prestadores de serviços e hoteleiros, o espírito que através da sua ousadia sempre animou a urbe, nos seus ombros caídos anunciando desgraça, como se carregasse todos os pecados do mundo, indumentária coçada e que já viu melhores dias, cabeça com cada vez menos cabelos, olhos baços sem esperança, implantados sobre negras olheiras, lábios mudos sem apelo, envelhecem a olhos vistos e, como sobreviventes num campo de batalha onde nuvens de fumo se elevam para o céu, parecem perdidos num labirinto sem saída. Se tentarmos puxar uma conversa, inevitavelmente, ela recairá sobre a descrença no amanhã e na interrogação: “o que é que vou fazer?”
O comprador médio, noutros tempos o motor da economia, com cada vez menos dinheiro no bolso, entra nas lojas, mira, revira os artigos, volta a revolver e, sem pudor, exclamando que não tem meios, sai com a frustração estampada no rosto.
O escasso adquirente de posses superiores, sempre que se sinta interessado num qualquer bem, oferece metade e, sem disfarçar, lança um olhar compungido de pena para cima do vendedor. Às vezes, como a chicoteá-lo impiedosamente, ainda lhe atira: “isto está muito mau, não está? O senhor vende alguma coisa? Coitado!”
Os jovens, a semente futura desta realidade pouco expectável, desempregados e sem futuro à vista, vivendo às costas da geração anterior, para além de não terem poder de compra –o pouco disponível vai para as noitadas de copos e própria da sua idade, já que outra via não lhes resta para afogar a desilusão-, não querem saber dos bens materiais e olham para estes como um burro mira um palácio. Diabolizam a posse. Vêem neles, nos bens, a droga, a dependência, a ambição, a desgraça do mundo, causa e consequência do fracasso desta economia hodierna.
Então, perante este cenário tétrico, tristonho e pessimista, o que fazer das cidades? O que vai acontecer a quem cá vive e, através do trabalho, aqui extrai o seu rendimento único que lhe permite, mensalmente, liquidar os seus empréstimos e fazer face às despesas do dia-a-dia? Verdadeiramente, esta é a questão que se coloca.
E o Estado não sabe o que se passa? Parece que não. Em vez de facilitar a vida aos cidadãos, fazendo leis de excepção e discriminação positiva, deixando-os pelo menos sobreviver, e para evitar que estes caiam no crime, pelo contrário, cria cada vez regras mais apertadas, desencadeando o ódio contra quem gere a coisa pública, para que cada um sucumba e se torne salteador e criminoso. Como exterminador compulsivo, através de impostos cada vez mais implacáveis, sem dó nem piedade, paulatinamente, vai fazendo encerrar os pequenos estabelecimentos, que, para além de serem o único sustento de uma prole, são as palmeiras de sombra deste deserto colectivo que se aproxima a passos largos.
Ninguém tenha dúvidas de que, quando o desânimo virar raiva, vai haver sangue a jorrar pelas pedras das calçadas. Ninguém vai estar seguro. A morte aproxima-se a passos de gigante. Alguém vai ter de pagar pela destruição de uma classe média que, através de muito esforço, suor e lágrimas, sonhou, abalançou-se para a sua concretização, realizou, e agora, numa insensibilidade atroz de quem governa, está prestes a perder tudo. Cuidado com as consequências desta frustração.
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