Há dias, à noite, no Largo da Maracha, deparei-me com um monte de lixo. Junto a este, espalhados no chão, vários lápis, marcadores de várias cores e outra plêiade de pequenos objectos. Pela forma anárquica como estavam distribuídos era mais que certo já alguém antes ter andado ali a recolher as peças de maior valor.
Antes de continuar, tenho de declarar que tenho uma atracção brutal por lixo –não tenho dúvida que terá a ver com a minha infância, quando, na minha aldeia, os meus pais iam espalhar o estrume, vindo da cidade, nas vinhas dos abastados lavradores, e eu criança, como pesquisador de ouro, procurava no meio do esterco um qualquer brinquedo desarticulado. Era uma felicidade apanhar um carro sem rodas.
Gostaria de clarificar que este meu interesse por lixo não é patólogico (por enquanto, penso) –uma doença associada, sobretudo, quando se transforma em dependência, isto é, quando alguém junta objectos sem valor indiscriminadamente, é a síndrome de Diógenes. O que me move, é antes de mais, uma curiosidade muito grande sobre tudo o que vai parar ao entulho –embora, também tenho algum interesse; já recolhi muitas peças no lixo. Também já coloquei muitas, mas, utilizo sempre um princípio: se forem objectos de alguma utilidade, coloco-os sempre fora do contentor e à mostra, de modo a serem visíveis por quem passa e para que os possam recolher.
Tenho para mim que o lixo de uma colectividade é o seu ADN. Se olharmos em vários pontos da cidade, em todos eles, os detritos são diferenciados. É possível encontrar desde um bom frigorífico a funcionar até a um bom móvel com apenas uma perna de apoio descolada.
Devagar, devagarinho, fui-me afastando do pensamento que me levou a escrever. Vou então retomar o fio à meada. Para os mais novos, sobretudo os que nasceram já na década de 1980, aqui na nossa terra, nem imaginam as dificuldades que os seus pais passaram para ter uma simples televisão. Para além de ser muito caro nem sequer havia em quantidade suficiente para podermos escolher à vontade.
Veio a adesão à então CEE, em 1986, e, devido à abertura total de fronteiras, os produtos foram embaratecendo e, progressivamente, foram chegando a todas as casas portuguesas. Foi boa esta democraticidade de todos os bens? Foi. Claro que foi. O problema é que os bens não pararam de descer de preço e, como tudo na vida, quando assim acontece, estamos perante uma disfunção que pode conduzir a economia ao caos.
Tudo começou em 1995, com o GATT, Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, ratificado entre Portugal e a Organização Mundial de Comércio. A partir daí, livremente, os produtos orientais invadiram todo o nosso País. Quem não lembra, nesta altura, a primeira loja de 300 na Rua das Padeiras, em que diariamente, se faziam filas para aceder ao seu interior? Um exemplo directo que costumo mostrar é este: passados poucos anos encerraram todas as fábricas de guarda-chuvas nacionais.
Fugindo novamente à linha que parecia conduzir o texto, hoje assistimos a qualquer casa portuguesa estar repleta de artigos de decoração, uns de grande qualidade e a maioria lixo, que não se sabe o que se lhe há-de fazer. E o grave é que esta invasão de todos os nossos lares com artigos baratos e de má qualidade está a desvalorizar completamente os artigos raros e grande qualidade. Está tudo saturado com tantos produtos. Então os mais novos não querem saber de nada o que sejam artigos para o lar.
É certo que, devido ao problema endémico de não crescimento da economia, estamos a viver uma profunda deflação, em que todo o mundo se quer desfazer do que tem em casa a qualquer preço, assim como o problema contínuo de aumento de impostos comendo a margem de compra, mas, quanto a mim, o problema já vem muito de trás. Não é preciso ser guru de economia para se ver que tudo o que seja loja de artigos novos, nos próximos tempos, está com um pé na insolvência.
Este excesso de oferta e embaratecimento dos produtos está retirar o encanto que qualquer um de nós tinha na dificuldade em adquiri-los. E essa dificuldade era parte inerente na conquista da coisa. Quanto mais se vender barato mais a economia afunda. Já se verifica por parte do consumidor uma overdose de oferta.
Será que as marcas de luxo, como por exemplo a Ferrari, se continuam a vender bem é apenas porque só estará ao alcance dos mais ricos? Será só isso? Não, não é só. O que contribui para este aumento de vendas é a dificuldade em obter o produto, o seu preço e a áurea de marca e mistério que torna um qualquer de nós distinto na escolha.
Reparem que já nem falei nos custos para o ambiente deste aumento desmesurado de produção de artigos de baixo preço. Comparado com o que aí virá nem é nada.
2 comentários:
gostei muito do texto e concordo muito. quando vejo alguma coisa boa junto ao caixote do lixo levo para casa sem vergonha nenhuma. se não quiser dou a outra pessoa e há sempre quem precise. odeio desperdicio.
beijos
Obrigada, Ana, por ter vindo comentar ao meu cantinho. É sempre um prazer muito grande recebê-la.
Abraço.
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