segunda-feira, 6 de setembro de 2010

BAIXA: ASSALTO AO CONTENTOR





 Serão 17 horas deste último Domingo. A carrinha conduzida por dois homens pára junto aos contentores da Loja do Cidadão. Começam por retirar imensos sacos pretos com o logótipo da Câmara Municipal de Coimbra (CMC) e que colocam dentro dos recipientes destinados ao lixo. Seguidamente pegam uma cadeira em mau estado e outros pequenos móveis de uma casa. Como se estivessem a expor numa feira de rua, colocam tudo simetricamente ao lado dos grandes jacob’s, desde um casaco de senhora até umas almofadas em bom estado de conservação. No Largo das Olarias umas pessoas, lentamente, começam a movimentar-se em direcção aos despojos. Mal a carrinha se perdeu na curva do pôr-do-sol, como por artes mágicas, todos os bens deixados desapareceram.
 Passada cerca de meia-hora, surge novamente a mesma viatura. Agora traz um móvel aparador e uma multiplicidade de utensílios, desde uma panela de pressão, plásticos diversos, até umas panelas em esmalte. Mais uma vez, nota-se uma grande preocupação dos transportadores em colocar tudo bem arrumado para que, dentro da teoria de Lavoisier, “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, alguém dê uma nova utilidade aos objectos aparentemente perdidos.
 Ainda a carrinha estava a manobrar e, mais uma vez, várias pessoas se aproximaram e, em menos de 10 minutos, fizeram desaparecer tudo, incluindo o móvel.
 Quem der uma volta à noite pela cidade, e se olhar para junto dos contentores estacionados, facilmente verificará que junto destes se pode encontrar de tudo, desde pequenos móveis utilitários, camas, colchões, frigoríficos em relativo bom estado, até louças de cozinha. Se estiver mais atento, constará que os bens legados para uma nova oportunidade, desaparecerão tão rápido quanto for a necessidade do extracto social envolvente. Ou seja, verificaremos que, por exemplo, nos Carvalhais de Baixo, uma zona da cidade sem grandes carências sociais, um bem pode permanecer sozinho, à espera de um novo dono, cerca de uma hora. Atente-se numa curiosidade: um móvel em razoável bom estado, no Bairro da Rosa, pode permanecer durante um dia sem desencadear uma cobiça alheia por aí além.
 Há meses, uma “Vicentina” da Conferência de São Vicente de Paulo pediu a um comerciante da Baixa uma cama e uns móveis de apoio para dar a uma senhora que não tinha quase nada. Quando pergunto à “Vicentina” se há procura de bens por parte dos mais carenciados, responde: “há sim, há muita procura. O problema é que mesmo que nos queiram oferecer os bens não temos onde armazená-los”.
Há tempos, uma funcionária da ADAV, Associação de Apoio da Vida, que se ocupa de grávidas carenciadas, pediu ao comerciante uns móveis para uma senhora imigrante da América Latina que morava ali para os lados da Estação Velha, e estava a dormir no chão.
Recentemente uma funcionária da CMC solicitou uns móveis para uma senhora, sujeita pelo companheiro a violência doméstica e que teve de abandonar o lar só com a roupa do corpo.
Em conversa com esta funcionária da autarquia, o comerciante ficou a saber que, dentro da CMC, a funcionar em instalações anexas à 2ª esquadra da PSP, existe um “projecto Baú”, que no âmbito do Plano de Desenvolvimento Social da edilidade, visa recolher bens e doá-los aos mais carenciados.
 Há cerca de dois meses, o comerciante, tendo conhecimento de um proprietário que se propunha vagar um locado de diversos bens domésticos, propôs que estes artigos fossem oferecidos ao “Projecto Baú”. Depois de telefonicamente acertar com o departamento, passados cerca de 20 dias foram retirados os utensílios.
A semana passada, mais uma vez o comerciante teve conhecimento de uma casa para despejar na Baixa. Simplesmente, neste caso, tinha mesmo de ser impreterivelmente esvaziada durante a semana. Na quarta-feira, o negociante deslocou-se pessoalmente às instalações do “projecto Baú”. Amavelmente, foi-lhe dito pela funcionária que, pelo prazo curto, não era possível recolher os bens. Perante a insistência do doador de que, perante as necessidades evidentes dos mais carenciados, era um contra-senso, a funcionária prometeu apresentar o caso superiormente e ligar ao proponente ainda durante o mesmo dia. Ligou sim…para corroborar que, “em virtude de o departamento não ter um carro alocado nem pessoal, não era possível recolher os proventos. Que pena! –salientou- até precisávamos tanto de um sofá. Mas não podemos, não temos meios humanos”.
 A partir daí foi uma aventura para conseguir evitar que os artigos domésticos fossem colocados na lixeira. Já na ponta final de Sexta-feira, conseguiu-se que uma associação de apoio aos mais desfavorecidos fosse retirar a maioria dos apetrechos –algumas das poucas associações da cidade só se ocupam destes casos gratuitamente se forem bens de grande qualidade para vender posteriormente. Quando são produtos de pouco valor económico –isto é, pela pouca procura que desencadeia- só se deslocam contra uma prestação pecuniária. Acontece, como penso que já ficou demonstrado atrás, que o valor da utilidade destes bens excede em muito o económico.
Sob o lema “dar para dar”, não deveria ser da responsabilidade da autarquia, através de publicidade diária num jornal local, desencadear meios para recolher tudo o que lhe seja oferecido e distribuí-lo pelos mais pobres? Estará certo, pela omissão dos serviços públicos, obrigar-se cidadãos carenciados a expor-se a este anátema social de vasculhar no lixo? Tirando outras variantes, só focalizando o ambiente, não deverá ser obrigação do Estado a mentalização geral para a reutilização dos bens supérfluos e apelando a uma redistribuição solidária?

3 comentários:

noname-metamorphosis disse...

não deverá ser obrigação do Estado a mentalização geral para a reutilização dos bens supérfluos e apelando a uma redistribuição solidária?

O estado tem vindo a (des)obrigar-se de tudo. até de manter a obrigação da pouca verdade com que já nos falava. Somos Europeistas e isso deve ser motivo para sermos felizes, segundo eles, isso deveria bastar-nos, penso eu de que...

Jorge Neves disse...

Ao ler e ver estas imagens, só me apetece dizer duas coisas.
A autarquia está para o povo como o povo para a autarquia.
Cada vez é mais urgente movimentos de cidadania para fazer ver a estes politicos/tachistas, como se trabalha em prol de todos.

A.R. disse...

Nenhum cidadão de Coimbra deveria ficar indiferente às imagens e descrição (onde andam os nossos Diários?).
A Câmara ,que tem a dizer? Silêncio,como é sua prática nestes casos.
Força,Luis!Obrigado pelo seu exemplo de cidadania.
Este Blogue está a fazer um excelente trabalho.Mais uma vez,parabéns.
PS- Corroboro tudo o que o Jorge diz a este respeito.Também ele um militante pela cidadania.