terça-feira, 18 de outubro de 2011

A QUEDA DO MERCADOR




 A Rua Martins de Carvalho, outrora um canal de grande comunicação e movimento entre o Mercado Dom Pedro V e a Praça 8 de Maio, pujante em oferta comercial, é hoje uma artéria triste, vazia de gente, de cor e sem alma. Ao lado, na torre sineira da igreja de Santa Cruz, o relógio, numa modorra complacente, bate melancolicamente as horas. No rosto dos poucos vendedores que resistem é patente a solidão. Olham em silêncio para os poucos transeuntes que passam como se cada um, em passada apressada, constituísse, aos seus olhos, uma tábua de salvação na possibilidade de safar o dia. Este arruamento é diferente de uma qualquer outra no Centro Histórico? Não, não é. Infelizmente, é apenas o paradigma das demais e da actividade comercial na cidade.
Do alto do seu meio-século, encostado à porta da sua loja e à direita de quem sobe, está Simão Pedro, através dos seus óculos grossos, a olhar o tempo acalorado deste Outubro desalinhado com outros de outros Outonos passados. Transpondo a porta, lá dentro, pelos artigos em desalinho, nota-se que ali reina o desalento de um homem só. “Tudo está em mudança. Para pior”, pensa para si mesmo Simão. A vida para este comerciante, nos últimos anos, deu uma pirueta de 180 graus. Do bolso retira um telemóvel e, como sempre faz quando está em baixo a roçar as pedras da calçada, visiona um vídeo que mostra a luz da sua luz, a sua querida mãe já numa fase terminal da sua existência, numa instituição da Rua da Sofia. É nestas imagens que vai tentando arranjar forças para encarar o dia-a-dia. Rita Branca, sua madre, foi vendedeira de artigos de retrosaria, durante décadas, na entrada de uma porta da antiga Rua das Figueirinhas, e o motor de arranque anímico deste mercador.
Por alturas do início de 1990, Simão, para tentar as boas graças da sorte, chegou a ter um pequeno café junto ao antigo Teatro de Sousa Bastos. Mas a ventura, como mulher dura e difícil, não se deixa seduzir facilmente por qualquer um -afinal, pretendentes não lhe faltam. Como não foi bafejado pela dita na zona salatina, no virar do milénio, juntamente com a sua protectora, adquiriu por trespasse uma casa comercial mesmo ao lado do Café Santa Cruz e formaram uma sociedade por quotas. Ali implantaram um estabelecimento de artigos diversos, uma espécie de lojas dos “300”, com plásticos, linhas de croché, louças, vassouras, detergentes e tudo o que fizesse falta numa qualquer casa de família portuguesa. Embora a renda do espaço não fosse muito barata, como o negócio corria bem, pagava-se sem males de maior. Mãe e filho viviam numa casa há várias décadas na Rua da Moeda, onde, com uma renda do tempo da outra senhora, pagavam menos de uma dezena de euros.
A partir de 2002, depois do célebre “discurso da tanga” de Durão Barroso, acentuadamente tudo começou a declinar. Foi o negócio a encolher a olhos-vistos, foi o mercado municipal a perder o hábito de frequência dos conimbricenses e subsequente esvaziamento da rua, foi a doença prolongada de sua mãe e que o obrigou a catar todas as reservas de um bolso que já foi.
Rita partiu deste mundo há um ano. Nos últimos tempos de vida foi acompanhada pelo filho como nunca imaginara. Certamente, também nunca pensara que, para além de boas recordações que deixaria a Simão, iriam sobrar problemas para o seu primogénito. É que, por força do Novo Regime de Arrendamento Urbano, apesar de toda a vida terem habitado o mesmo locado, Simão não tem direito à transmissão e tem em curso uma acção de despejo a decorrer. Por outro lado, resultado das contínuas quedas de receita, a loja não consegue ganhar para a renda de mais de 400 euros. Quando faz alguma coisa –porque há muitos dias que não abre a caixa-registadora-, é sempre entre 10, 15 euros por dia. Já tem a renda do estabelecimento em atraso de vários meses. Finanças e outros impostos nem valem a pena recordar. Já pediu ao senhorio que lhe baixasse a mensalidade. O senhorio, talvez compreendendo a situação, respondeu que ele fizesse uma oferta. Simão ainda não fez. Interroga: “a fazer tão pouco, que mal dá para eu comer, que renda lhe vou oferecer?”

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