domingo, 30 de outubro de 2011

OS OLHOS DA SOLIDÃO

(IMAGEM DA WEB)



 A mulher está sentada num cadeirão, na varanda do primeiro-andar. Os seus cabelos prateados, curtos e um pouco desgrenhados, conjuntamente com os olhos fixos no Sol de Outono deixam adivinhar tristeza. Muita tristeza. Pela fixação no astro-rei, até parece que procura explicação para as suas imensas interrogações.
É uma mulher simples, basta atentar na bata em chita florida de doméstica que lhe cobre o corpo já martelado pelo peso de mais de setenta primaveras. É magra, de rosto anguloso, e com um olhar cansado, polido, mas um pouco reluzente como se negasse cair nas malhas da indecisão.
Vamos chamar-lhe Maria. Então, então, porquê essa nostalgia toda? –interrogo ao atentar naquele quadro de abstracção.
-É a vida, senhor! É a vida! -responde-me em forma arrastada de lamento.
-Ora, ora, insisto, está um dia bonito. Já viu este Sol retemperador de energias?
-É o que me vale, senhor. Só esta força da natureza me auxilia quando estou sorumbática. É esta luz divina que me recarrega a alma e me dá alento para continuar nos caminhos tortuosos do tempo.
-Então? Mas o que se passa com a senhora? Parece muito triste…
-Estou sim, mas não é só de agora. Há muito que a solidão se me colou no corpo como se fosse uma máscara. Da mulher feliz, que fui noutro tempo, já nada resta…
-Está doente?
-Estou doente pela ingratidão de outros…
-Mas como? Quer falar um pouco?
-Sim, agradeço. Tenho pouca gente com paciência para me ouvir. Hoje, não há tempo para os mais novos, quanto mais para os mais velhos…
-Tem filhos? E marido?
-tenho uns e outro, mas é como se não tivesse…
-Como é que é? Conte lá… se pode…
-Olhe, o meu marido tem 85 anos e está há quatro anos no hospital. Deixou de andar. Apanhou lá um vírus e nunca mais deu um passo. É tudo na cabeça. Ele não quer andar. Desistiu da vida. São os desgostos, sabe? São os filhos… -e os olhos inundam-se de lágrimas correntes pela pele branca.
-Quantos filhos tem?
-Temos um casal. Um rapaz de 54 e uma rapariga com 52. Ele trabalha no hospital, ela é professora…
-E o que se passa com eles? Não vos visitam?
-Não. Desde que o meu marido deixou de andar, e está no hospital, nunca mais nos visitaram. Há quatro anos, ainda o meu homem estava aqui em casa mas já debilitado, a minha filha veio visitar-nos –coisa que já não fazia há muito tempo. O meu marido, ao vê-la, disse apenas isto: “ainda agora?”. Ela esteve cá menos de 10 minutos, porque, lá fora, estava já o companheiro a tocar a buzina do carro. Nunca mais a vi. Entretanto o pai foi para o hospital –está lá porque vivo sozinha e sem condições- e ela nunca mais quis saber dele…
-E o seu filho?
-É muito estranho… não consigo entender. O meu filho é funcionário do hospital, pois acredita que, estando lá internado o meu marido há tantos anos, ele nunca foi ver o pai?
- E a si, visita-a?
-Não, nunca mais me visitou –e novamente uma torrente de lágrimas irrompem pelos sulcos fundos do seu rosto angustiado. Eu é que, quando vou ver o meu marido, de vez em quando, lá vou vê-lo ao seu serviço. Acredita que me faz uma grande festa quando me vê? Já tantas vezes lhe perguntei quando é que vai visitar o pai, que até já lhe perdi a conta. Ele responde: “para a semana”. Só que essa semana nunca chega. Não sei o que se passa com este meu filho. Olhe que lhe telefono… nunca me atende. Há dias fiz uma experiência, pedi a um vizinho que ligasse logo a seguir a mim. Para ele atendeu. Porque fará ele isto comigo? Porque será ele assim para o pai?
-Mas houve alguma coisa entre vocês, pais, e os seus filhos?
-Não, nunca houve nada. Passaram a ser assim desde que o meu homem ficou numa cadeira de rodas. E olhe que o meu marido foi sempre tão bom para eles…
-O que é que ele fazia profissionalmente?
-Foi sempre enfermeiro. Olhe, nem o senhor calcula o esforço que fizemos para os meus filhos se formarem. No dia da licenciatura de cada um deles, o meu marido chorou, como nunca vi ninguém chorar assim. É triste, sabe? Assistir a isto, depois do que passámos…
-E o que dizem os médicos sobre a doença do seu marido?
-Dizem que ele não anda por causa da tristeza que tem no coração. Ainda há dias, um dos clínicos, para ver como é que estava o seu raciocínio, fez-lhe várias perguntas. De onde era, que idade tinha, onde morava. Ele respondeu tudo acertadamente. Até que lhe perguntou quantos filhos tinha. Ele respondeu, “quatro!”. “De certeza que são quatro?”, insistiu o médico. O meu marido virou a cara, e as lágrimas começaram a rolar como se fosse o rebentamento do saco de águas, quando os pari. Já não lhe arrancaram nem mais uma palavra.
Olhe, os meus dois filhos nasceram cá em casa. Se não fosse este facto, diria que tinham sido trocados na maternidade…


(HISTÓRIA, INFELIZMENTE, REAL)

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