domingo, 2 de outubro de 2011

O CARLITOS FEZ ANOS





 No restaurante Paço do Conde, na Baixa de Coimbra, perante uma mesa com 15 pessoas o “Carlitos” “Popó” apagou duas velas de aniversário correspondentes a 65 anos de idade.
Foi graças ao Bruno Morais –o anjo da guarda do “Carlitos”- e à família que esta bonita festa se realizou.
Foi bonito de ver o ar de felicidade do “Carlitos”, todo engravatado, entre tantos amigos –para quem não souber o “Popó” é um “ex libris” do Centro Histórico. Tem uma ligeira anomalia psíquica que o torna muito instável emocionalmente. Por aqui, estou em crer, todos o reconhecem com carinho e bonomia.
O “Carlitos” vive numa pensão aqui da Baixa –que é paga com RSI, Rendimento Social de Inserção. Naturalmente, como não se consegue administrar, é o Bruno que, diariamente, se encarrega de o encaminhar pelos caminhos do bem. É a mãe do Bruno que, apesar de muitas dificuldades financeiras, lhe lava a roupa, passa a ferro e o deixa tomar banho lá em casa da família para que ele se apresente como deve ser a quem se cruza com ele. “É uma criança grande, mas todos gostamos muito dele”, diz-me a senhora enternecida. “É como se fosse da nossa família, entende? Nós somos cabo-verdianos e, por isso mesmo, somos gente muito solidária. Tenhamos pouco ou muito, o que tivermos, é para distribuir por todos. É assim que vem na Bíblia. Deus está lá em cima a olhar por nós. Deus é pai!”

TRISTE SORTE SER NEGRA EM PORTUGAL

 Segundo me contou, enquanto fomos deglutindo o bom jantar servido no Paço do Conde, “é muito triste ser negro aqui. Todos nos tratam como se fôssemos de segunda categoria. Constato isto diariamente. O que me vale é a minha fé. É com Ele que divido a minha dor. Veja bem, trabalhei 18 anos numa grande empresa de Coimbra. Trabalhei muito duro, nem o senhor imagina. Olhe que muitas vezes tive de deixar os meus filhos pequenos para ir trabalhar, porque o patrão chamava. Havia uma grande encomenda para despachar, e eu ia. A minha família dizia-me, um dia vais arrepender-te de toda essa entrega, mas eu não ouvia. Eu precisava de trabalhar para alimentar os meus três filhos. Eu fazia o que fosse preciso sem olhar ao esforço. Um dia caiu-me uma peça sobre o ombro e atingiu-me um peito. Fui para a clínica para ser operada e foi-me atribuída uma incapacidade ao braço de 96,5 por cento. Não tenho nenhuma força nele. Por inerência da pancada no peito ganhei um nódulo que viria a tornar-se cancerígeno. Felizmente benigno -no entanto, volta e meia tenho de tirar líquido. Pois olhe que não me foi atribuída pelo seguro de acidentes de trabalho nenhuma forma de compensação. Continuei a labutar. Eu precisava do emprego para criar os meus filhos.
Há cinco anos o encarregado do armazém meteu-se comigo num dia em que apenas estávamos os dois a trabalhar. Queria ter relações comigo a toda a força. Bolas, eu sou viúva, sou negra, mas não sou uma coisa. Dentro deste peito pulsa um coração. Afastei o homem. Ele continuou a insistir e atirou-me com uma palmada na cara. Agarrei numa cadeira e abri-lhe a cabeça. Fui ter com o patrão, convencida que ele iria entender a minha posição de fragilidade. Respondeu-me que eu deveria ter comido e calado. Como? Interroguei. Mas o homem não estava para passar confiança a uma empregada negra. No dia seguinte, quando fui para pegar ao serviço já não me deixaram entrar. 18 anos de entrega àquela empresa tinham um fim sem história.

E CALA-TE… SENÃO…

 Contratei um advogado e fomos para o Tribunal de Trabalho. Depois de muito tempo deu-se o julgamento. As provas desapareceram. Não me pergunte nem como nem porquê. Só sei que uma amiga minha viu o meu advogado a comer em casa do meu ex-patrão. Perdi a acção intentada em tribunal. O advogado ameaçou-me que se eu fizesse alguma coisa que mandava raptar-me os meus filhos.
Hoje, incapacitada, ferida na minha dignidade e com a alma a derramar sofrimento a todo o momento, estou aqui sem qualquer indemnização. Tenho a sorte de ter uns filhos magníficos e uma grande esperança em Deus. Deus é pai!”

DEUS NÃO DORME

 Todos os dias, quando me levanto, rezo ao Pai. Encarecidamente lembro-O para que não se esqueça de quem me fez tão mal. Eu sei que Ele está vigilante. Eles pagarão tudo aqui na Terra o que me fizeram. Acredite. Olhe, passado pouco tempo do julgamento, encontrei aqui na Baixa o encarregado. Ele bem se queria esquivar, mas eu fui atrás dele e disse-lhe: o senhor fez-me muito mal. Mas, pode crer, não se vai ficar a rir. Deus é grande e cuidará de si. É só mesmo uma questão de tempo. Aguarde. 
Vim a saber há tempos que tem um cancro maligno.
O meu ex-patrão, talvez de ruindade, também está muito doente. Há dias fui ao hospital e dei de caras com ele. Só queria que visse, o fulano nem sabia o que fazer. Se havia de avançar para a frente ou para trás. Eu levantei os meus olhos e fitei os dele. Disse-lhe: não fuja de mim que não vale a pena. O senhor é muito rico. Eu sou muito pobre. O senhor pode comprar tudo e todos, mas não conseguirá comprar o destino que Deus lhe reserva.”

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