sábado, 7 de junho de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA: O ESTRUME DA CIDADE (11)


(FOTO DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)


  Em meados do século passado, nas aldeias, os animais, para além de constituírem a força motriz dos campos e a reserva alimentar de carne dos seus donos, enquanto permaneciam nos currais, eram “fabricantes” de estrume. Esta mistura fermentada, com os seus próprios dejectos e também o mato roçado nos pinhais que lhes serviam de cama, constituíam um poderoso adubo orgânico nas sementeiras.
Porém, para os grandes lavradores mais abastados esse estrume, produzido pelos seus próprios animais, era insuficiente, então muitos deles recorriam à “importação” de esterco da cidade. Não sei exactamente de onde, mas provavelmente de grandes quintas, imagino, como, por exemplo, a então Escola de Regentes Agrícolas, hoje chamada apenas de Escola Agrícola de Coimbra.
Um desses lavradores, na minha aldeia, em Barrô, era o senhor Matos, que recebia o estrume directamente nas suas muitas vinhas, na zona de Cadouços, ali mesmo encostado a Grada, junto à Mealhada. Como os meus pais trabalhavam à jorna, ao dia, para eles, quem habitualmente ia espalhar o esterco, porque era um serviço mais leve e menos especializado, era a minha mãe. Então, entre a Primavera e o Verão, eu com cinco ou seis anos, acompanhava-a para os campos afastados da aldeia e perdidos no horizonte longínquo. Recordo com nostalgia os ruídos reconfortantes, tão próprios da quietude dos campos. O chilrear dos muitos passarinhos, o particular cantar do cuco, o bater de asas de um milhafre que se assustara, ou decidiu partir para longe. O vento a soprar por entre pinheiros esguios a desafiar o céu, criando uma melodia de mil acordes desafinados, de vez em quando um pequeno baque!, uma pinha desprendera-se da alta árvore e estatelara-se no chão suave, atapetado com milhentas “agulhas”, a caruma dos membros das Pináceas. O silvar de uma pequena serpente, saracoteando-se pela terra brava. A água correndo por pequenas valas, por entre vinhas, que servia para dissolver o sulfato para pulverizar as videiras contra os míldios e outras moléstias. O ar árido dos caminhos de terra batida, com o sol a esquentar e a morder as pedras, como só é possível sentir num dia de canícula. O descansar, sentado com as pernas ao comprido, encostado a uma oliveira e usufruindo da sua sombra paradisíaca.
Envolvido por todas estas sensações, vendo a minha mãe espalhar com esforço, amodorrando ao sol, como se as batidas do seu coração fossem audíveis naquele silêncio de mil ruídos, como se sentisse o seu sangue nas têmporas ansioso por chegar ao coração, com o suor a querer alagá-la, era então inundado pelo cheiro a estrume, um odor que, para a maioria seria fétido, desprezível, para mim era um prazer divinal para o meu olfacto.
Depois vinha o melhor, o magusto para as minhas brincadeiras. Mal a minha mãe começava a espalhar o esterco, eu, ao seu lado, como arqueólogo atento, não perdia um centímetro do novo manto da terra negra. É que, misturados nos dejectos, vinham pequenos tesouros, despiciendos para os meninos abastados da cidade, mas uma pequena lotaria para mim, o menino da aldeia. E, perguntará o leitor, que riquezas seriam essas? Eram como despojos de guerra, pequenos brinquedos estropiados, carros sem rodas, bocados de lápis, isqueiros avariados –estes constituíam um forte fascínio, porque só os adultos os podiam usar e apenas com licença.
Se Tivesse conhecimento antecipado, na noite anterior, da ida para os campos para espalhar o esterco nas vinhas, de ansiedade, mal conseguia dormir. Imaginava, antecipadamente, no meio do estrume, um lindo brinquedo incólume, completo, porém, creio, que tal nunca aconteceu. Estes “restos” de brinquedos, conjuntamente com os que eu produzia da carrasca do pinheiro, foram a ponte para o meu imaginário.
Hoje, dá vontade rir, a mim e a si leitor, porque contar isto é tão “comezinho”, “coisinhas” tão sem jeito, mas, em boa verdade, estou a ter muito prazer em dividir isto consigo. É triste? É deprimente? Não sei! Se calhar é mesmo. Para mim é apenas a verdade de um tempo que passou. E porque o narro? Perguntará. Talvez por três motivos: o primeiro, provavelmente é que, com esta descrição estou a acertar contas, numa catarse, com o passado. O segundo, talvez, para que os mais novos tomem dele conhecimento. E o terceiro, sem querer ser alarmista, com algum receio que estes tempos infelizes possam voltar. Oxalá que não!

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