Pouco passava das 9h30 quando eu, o Arménio Pratas e o Francisco Veiga pusemos os sapatos a andar sobre as pedras da calçada. Os três vamos tentar apelar à solidariedade, ao mais fundo da sensibilidade humana de cada um. Vamos pedir ajuda monetária para um nosso colega, o Armindo Gaspar, que está a viver um momento indescritível de agonia financeira. Ontem, em cima dos seus já imensos problemas, viu a sua loja vandalizada e roubada dos perfumes de maior valor. O estabelecimento ficou praticamente sem nada para que ele possa continuar a ganhar a vida nos dias que aí vêm.
Eu vou à frente. Não me custa pedir… desde que não seja para mim. Passei a minha vida a pedir, quase a estender a mão. Tenho um profundo respeito por quem pede. No caso presente, faço isto sem qualquer dificuldade. Aliás, confesso, é como se fosse um qualquer trabalho, uma qualquer missão. Tenho para mim que o íntimo de uma pessoa se revela no momento em que é posta à prova, isto é, quando alguém apela à sua generosidade. Então gosto destes desafios. É como se estes contactos me enriquecessem e me ajudassem a conhecer melhor o ser humano.
O Veiga e o Arménio, homens de trabalho como eu que viemos de lá de baixo –da latrina, como costumo dizer- e, a pulso de muito esforço e trabalho, atingimos uma posição que nos permitiu até hoje viver desafogadamente. Até quando não se sabe. Noto que ambos me acompanham com muita dificuldade nesta acção. Sentem-se constrangidos.
Para quem não faz da mendicidade um exercício diário, o acto de pedir –para nós mesmo- implica um estado de alma, uma coragem constante da parte de quem roga. Por outras palavras, é o sofrer antecipadamente, sabendo que o nosso interlocutor tem aquilo que nos falta, mas com uma elevada esperança na satisfação do pedido. É saber que, psicologicamente, no fundo do espírito estamos uma lástima, mas temos de fingir, teatralizar. A humildade deve estar sempre presente. O doador, embora seja imanente à condição humana, psicologicamente, gosta de sentir que está por cima. Embora no momento de doar seja tomado de vários conflitos em catarse. O medo de um dia trocar de posição com o sujeito que está à sua frente passa-lhe sempre pela mente e, muitas vezes, vai condicionar a sua vontade, impelindo-o a contribuir.
Pedir para outros, para outras causas –pelos menos no meu entendimento- é muito fácil. Não implica o rebaixamento psicológico. Antes pelo contrário somos tomados de um sentimento de alteridade, fazermos algo transcendendo a diferença e em prol de alguém, que a maioria não consegue. Então acontece que, nesta situação, facilmente quem pede pode tornar-se arrogante, como se sentisse que o outro, o doador, tem de ser tomado da mesma solidariedade que nos move –senti isso hoje mesmo.
Dizia eu, então, que o Veiga e o Arménio não estavam muito à vontade no desempenho voluntariamente aceite –saliento que convidei outros colegas que não aceitaram. Disseram mesmo que lhes custava muito andar por aqui “de mão estendida”, a fazer caridade. “Era demasiado deprimente”, arguiram.
Começámos num largo da Baixa. Inicialmente explicávamos ao que íamos. No primeiro estabelecimento que entrámos “o patrão não estava”, foi-nos dito pelo gerente. “O proprietário estava no Brasil e só regressava lá para a Primavera”, transmitiu-nos, a despachar-nos sem grande cuidado.
Entrámos no segundo. Aqui, quase sem explicarmos ao que íamos, o dono puxou imediatamente de várias notas.
Começámos numa rua, a seguir, noutro espaço comercial. “O patrão está em reunião. Podem aguardar?”, foi-nos transmitido pelo funcionário, na interrogativa. Aguardámos. Veio o dono. Quando viu três sujeitos, um deles, eu, com folhas na mão, deveria ter pensado para si mesmo: “mau, mau! Daqui não vai sair coisa boa. Ou ferroada ou martelada!”
Recebeu-nos com cara de poucos amigos. Eu conhecia-o, já escrevera no blogue mais do que uma vez proactivamente sobre o seu estabelecimento. Explicámos o que nos movia. O rosto continuava tenso. Quase de má vontade, puxou de uma nota e colocou-a em cima do balcão. Enquanto começava a tomar conta da inscrição, atirei: “então, o senhor, não dá mais?” -Olha o que eu fui dizer. Enfureci completamente o bicho. Só lhe faltava deitar fogo pelas narinas. “O quê?? Olhe, já estou arrependido por ter dado isto!”, replicou, zangado. O Arménio e o Veiga, pelos traços embaraçados do rosto, pareciam pedir a Deus que os tirassem daquele filme.
Continuámos. A seguir entrámos noutra loja. Também conhecia a proprietária –já escrevi no blogue, também. Explicámos a razão de estarmos ali. Começou por dizer que as coisas estavam assim, assado. A Baixa precisava disto, daquilo, e era preciso fazer mais não sei o quê. E nunca mais se decidia. Interroguei: “podemos então contar com o seu contributo?”. Puxou de duas notas do bolso, completamente amarfanhadas e colocou-as em cima do balcão, assim da mesma forma que se coloca a palha na manjedoura do burro. Fiz de conta que não liguei, mas fiquei furioso. “Filha da mãe”, pensei com os meus botões.
Entrámos noutro estabelecimento. Após alguma indecisão. Veio uma boa dádiva, mas, atenção, tinha de ser anónima. Ninguém poderia saber. “às tantas, ainda vão dizer que o que dei é pouco. Sei lá!”, replicou.
Continuámos. Reparámos que nesta artéria quase todos tinham conhecimento do caso pelo Diário de Coimbra. Muitos ao comparticipar invocavam: “o senhor Armindo é um bom homem! Todos devemos ajudar. Não sabemos o nosso dia de amanhã!
Entrámos noutra rua. O Arménio já estava à vontade. Até parecia que sempre fez aquilo na vida. O Veiga continuava reservado, mas andava sempre ao nosso lado. Nesta rua fomos surpreendidos pela enorme generosidade de vários comerciantes. Também entrámos em algumas lojas onde o desespero e a frustração de não poder ajudar era patente no rosto: “desculpe, desculpe, mas há vários dias que estou a fazer um, dois euros. Não conseguimos ganhar para renda. Sinto tanta pena!” –reparei no casaco coçado que tinha vestido. Tinha a certeza de que falava verdade.
Continuámos. Numa loja, onde os patrões estavam noutra cidade, falámos com a funcionária. Disse-nos: “eu vou transmitir o vosso pedido, mas olhe que eles nunca estão abertos a nada. Nunca ajudam ninguém. Mas não importa, contribuo eu” –e puxa por uma nota do bolso para nos dar. Não aceitámos. De empregados não aceitamos, já bastará as suas dificuldades.
Entrámos noutro estabelecimento. Estava um colaborador. Explicámos ao que íamos. De maus modos, replicou: “eu quero lá saber disso? O problema é dele! Eu já não sou aumentado há três anos!”, replicou com azedume e patente ressabiamento.
Entrámos noutro espaço comercial. Nem foi preciso alongarmo-nos. “Eu sei ao que vêm. Eu li no jornal. Gosto muito do Armindo. Uma boa pessoa. Que pena! Não imaginava que precisava da minha ajuda!” –e dá uma vultuosa contribuição. À saída ainda diz: “eu depois vou fazer outra entrega pessoalmente ao Armindo!”
Vamos a outro comerciante: “tenham paciência, mas eu quero fazer a minha entrega anonimamente. Vou deixar debaixo da porta do estabelecimento do Armindo” –Diz-nos em recado.
Vamos a outra loja de um abastado comerciante. O Arménio e o Veiga tentam desmotivar-me a ir lá. Um deles diz: “Ó pá!, parece que não o conheces. Só vamos perder tempo!”
Mas eu gosto de esticar a corda. Quero mesmo ver como reage o homem perante este caso de necessidade. Sou eu que falo, a expor a situação que nos levou ali.
-O que vocês andam a fazer é uma vergonha! –Enfatiza.
-Vergonha? Porquê? –Interrogo.
-Porque sim! Em vez de andarem aqui a pedir aos comerciantes, deviam ir directamente às instituições!
-Ai sim? E a que instituições nos podemos dirigir? –Interrogo.
-Não sei… sei lá! Isso é um problema vosso! –Replica com algum mau modo.
-Mas o senhor tem consciência do estado financeiro em que se encontra o Armindo? É uma questão de humanidade. Ele precisa de dinheiro para retomar a sua actividade. Ficou com a loja toda destruída. –Contraponho.
-O senhor agora quer dar-me lições de humanismo, é? Quer-me ensinar? –replica meio furioso.
-Não, não quero. O que preciso é da sua contribuição. Pode ajudar? –respondo e interrogo.
-Devo dizer-lhe que não gosto de algumas posições que o senhor toma. Está a ouvir? –Desafia.
-Que posições? Pode exemplificar? –Pergunto.
-Não posso, nem quero. Quem é você para me interrogar? –E virou-nos as costas displicentemente.
O resultado desta primeira experiência solidária foi fantástico. Os homens de boa vontade deram-nos 1230 euros nesta manhã, deste primeiro dia. Estas excepcionais pessoas ajudaram a colmatar o azar de um homem bom. Muito obrigado a todos. Que sejam abençoados. Amanhã continuaremos.
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