terça-feira, 27 de janeiro de 2009

EDITORIAL: A CULTURA DO SUCESSO




Comecei a trabalhar no comércio em 1973. Durante uma década, como empregado, assisti, como testemunha, à ascensão fulgurante do comércio tradicional. Assisti ao erigir de grandes fortunas pelos então “patrões à antiga”, onde a exigência de vender a todo o custo era o lema. Alguns deles, pessoas sem escrúpulos, passavam por cima de tudo e todos para atingir os seus objectivos. No geral, todos sabiam que eram uns crápulas. Mas mesmo assim eram admirados e tratados com deferência e respeito.
Quando morreram, há cerca de uma década, para além de imensos prédios e terrenos, deixaram aos seus filhos descendentes várias lojas na Baixa da cidade com várias dezenas de funcionários, alguns deles com quarenta anos de casa. Hoje, muitos destes outrora herdeiros ricos, estão na falência e já encerraram quase todas as lojas do grande império construído pelos seus pais. Para além de trágico, não deixa de ser curioso, metaforicamente, é como se o destino, embora já na segunda geração, fosse tomado de consciência dos actos perpetrados arbitrariamente, se tornasse justiceiro, e se encarregasse de “espalhar ao vento” a riqueza que, embora sem olhar a meios, tanto levou a construir.
Infelizmente, não são só estes “meninos nascidos em berço de ouro” que estão insolventes. Quase todos os meses assistimos à falência de alguém, da nossa rua ou de um beco próximo, que durante muitos anos primou connosco. Tomávamos café no mesmo sítio. Encontrávamo-nos na rua à mesma hora e, de vez em quando, trocávamos uma graça “picada” acerca do clube de futebol. Cada vez mais, no nosso meio comercial, são cada vez menos os rostos nossos conhecidos.
Por cada comerciante que cai, com a sua loja a encerrar, a nossa rua fica mais deserta e triste e a zona histórica, outrora a “jóia da coroa” da cidade, já de si desertificada, fica mais pobre e entregue aos menos de menos, que, cada vez menos, têm forças para poder resistir.
Sobretudo há dois anos para cá, como árvores de grande porte que se abatem no meio da floresta, os comerciantes vão caindo…mas sem estrondo. As árvores, pelo menos ao cair, fazem um grande barulho. Os homens-mercadores, como se atacados por um vírus dizimante, caem em silêncio. Ninguém se importa. Um pouco em exagero, em juízo de valor, é como se os restantes pensassem que “enquanto vai ele não vou eu”, ou então pensam: “caindo ele, é menos um que fica e agora vou vender mais”. Há aqui demasiado egoísmo associado. Se não, como entender esta apatia dos poucos que ficam e vão resistindo?
Ontem “caiu” o Jaime. Sem pompa, sem glória nem circunstância. Pensam que alguém se importou? Ninguém. Antes de falar com ele, falei com alguns colegas vizinhos acerca da tragédia que se abateu no seio do meu amigo Jaime. E o que ouvi da boca de muitos deles? “Não teve juízo. Ele serve para ser empregado, jamais para patrão. Não tem orientação. Tem o que merece”. De ninguém ouvi uma palavra de compreensão e de desvalorização para o desastre que se abate sobre a cabeça do Jaime. De ninguém ouvi uma palavra de apreço, ou dizer que o que lhe aconteceu é fruto da crise que vivemos e que todos, como roleta russa, estamos em fila. A maioria dos comerciantes, para além de narcisista, é sádica. Não perdoam o insucesso…desde que calhe aos outros. E se falo nisto é porque noutras situações idênticas o comportamento dos colegas é igual.
Não deixa de ser curioso porque na morte de alguém, que poderia ter sido um traste em vida, já se perdoa tudo. É como se fosse lavado com água-benta e, depois de morto, tudo lhe fosse perdoado e passasse a ser a melhor das pessoas que passou por este mundo. Neste culto da morte, creio, para além de cultural, tem muito de medo obsessivo associado. “Não venha o maldito incomodar a gente depois de morto. Pelo sim pelo não, o melhor é perdoar-lhe. Não vá o diabo tecê-las”, pensa o povo, enfaticamente.
Mas, insisto, por que somos tão intolerantes perante o insucesso de alguém?

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