LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA
Para além da coluna Memória: "O cavalheiro de Lancelote", deixo também os textos "Reflexão: Uma espinha na alma" e "O espírito da República".
MEMÓRIA: O CAVALHEIRO DE LANCELOTE
É muito provável que em 17 de
Julho de 1949, quando dois ministros do Estado Novo inauguravam o abastecimento
de água canalizada ao concelho de Meda, à mesma hora, na Sé Nova, em Coimbra,
Celeste acabasse de constatar que o “saco de águas” rebentara e, daí a pouco,
pusesse no mundo Rogério Eloy, o seu segundo filho e membro de um rancho que
viria a ser de seis.
Era uma família modesta e de
parcos recursos económicos. O pai de Rogério, Eliezer, para fazer face às
dificuldades, conjuntamente com a prole, chegou a migrar para Lisboa em busca
de uma vida melhor. Porém, houve um esteio na família que nunca se habituaria à
partida do menino para a Capital: a avó Sofia, evangélica, muito religiosa e de
profissão de fé. A velha senhora chorava noite e dia sentida pela falta do
garoto. Era de tal modo a tristeza ensimesmada que o avô, sem nada dizer,
partiu para a grande cidade do Tejo e, com a anuência de Eliezer e de Celeste,
trouxe o miúdo para Coimbra, onde este viria a compartilhar o mesmo teto até
aos 7 anos. O que faria a avó gostar de mais deste neto era um mistério, mas é
bem possível que Sofia, sendo muito ligada às questões transcendentais, visse
nele qualidades espirituais que ninguém mais pressentia. De facto, Eloy, tendo
em conta a sua pouca idade, era um menino diferente de todos os demais. A sua
assertividade, a sua calma, a luz que parecia irradiar dos seus olhos, o seu
interesse em querer saber tudo acerca de Cristo, eram qualidades que a anciã
consideraria um milagre de Deus.
(Foto de Leonardo Braga)
Tinha então o miúdo 7 anos quando
os seus pais regressaram de vez à Lusa Atenas e abandonou a casa dos avós.
Eliezer, o pai, foi trabalhar, como operário, para a Estatuária e a mãe,
Celeste, como enfermeira na Sagrada Família. Naquela mudança houve um corte
profundo que marcaria o petiz para toda a vida. Enquanto a avó era o seu
firmamento omnipresente, o seu pai era o sol distante, despreocupado com os
afectos e a idiossincrasia de cada um. Apesar disso, a vida na casa desta
família humilde ia rolando como era costume nessa época de grandes carências no
país. Todos tinham de trabalhar para fazer estender os dias até ao fim do mês.
Mal acabou a então quarta classe, Rogério não quis estudar mais. Mais que certo
que o pai Eliezer não se importou muito. Afinal, sempre era mais um pecúlio que
vinha ajudar em casa.
(Foto de Leonardo Braga)
Com cerca de 13 anos começou a
trabalhar na sapataria Progresso, na Rua Eduardo Coelho. Como o ordenado de 100
escudos por mês -50 cêntimos- era pouco e ia inteirinho para casa, passado um
ano mudou-se para o António Fernandes Canhão, ferramentas e máquinas, ao Arnado,
e foi auferir três vezes mais. Como era normal nesta década de 1960, o
princípio era o fim, a verba, e pouco interessava o que se iria fazer.
Procurava-se um trabalho o mais bem remunerado possível e jamais uma vocação.
Esta era sempre uma consequência e nunca uma causa. Com o tempo passava-se a
gostar. Vamos dar a palavra ao Rogério: “eu fazia tudo, qualquer trabalho,
desde que me pagassem melhor do que o anterior. Todo o dinheiro ia para o meu
pai. Ele só me vestia e calçava e dava-me umas moedas para o autocarro. Então,
para poupar, e de modo a poder comer um bolo, andava sempre a pé. Como era
demasiado responsável para a minha idade –era um homem em ponto pequeno-, e
sempre gostei de ajudar, chegava a arranjar trabalho para outros. Fosse no que
fosse, adaptava-me facilmente a qualquer ramo.
Foi assim que comecei no comércio
de sapataria, fui para ferramentas, estive numa casa de fabrico de vassouras, a
Scala, na Rua Simão de Évora, e, por acidente, acabei na indústria têxtil a
fazer camisolas de lã numa máquina “Cotton” de 12 cabeças, na Fábrica de Malhas
Redinha, junto à Estaco. Fazia cerca de 180 camisolas por dia. Estive lá até
aos 17 anos e já ganhava 14 escudos por dia –recebia à semana. Saí porque o
patrão, vendo que eu tinha talento, deu em prometer-me o Céu e a Terra.
Colocou-me a trabalhar 12 horas durante a noite e nunca cumpriu. Um dia,
agarrei no casaco e vim embora. Depois passou a andar atrás de mim a
oferecer-me “mundos e fundos”, porque não tinha quem trabalhasse com a máquina.
Fui para a “Veneza em Coimbra”, na Rua Ferreira Borges, onde estive até ir para
a tropa. Depois de 3 anos no Serviço Militar em Moçambique regressei e
recomecei na mesma atividade. Mas precisava de voar mais alto, como quem diz,
ganhar mais para constituir família. Como este meu patrão, que aliás era muito
meu amigo, não podia pagar mais, tive de procurar uma oferta melhor, fui abrir
o Tito Cunha, na Rua da Sofia, em maio de 1973. Mas eu queria trabalhar por
minha conta. Era o meu sonho. Um ano depois, em 1974, conjuntamente com mais
dois sócios, inaugurámos o pronto-a-vestir Lancelote, na Rua do Corvo. Dois
anos depois fiquei sozinho na sociedade.
Foi um tempo fantástico, essa altura.
Quando me lembro das ruas da Baixa repletas de gente e comparo com os dias de
hoje acredita que me dá vontade de chorar?
(Foto da Web)
Cheguei a ter 6 pessoas a laborar na
loja. Não havia mãos a medir. Apesar de agora ainda continuarmos a ser quatro,
pode crer que é pela consideração que tenho por quem me ajudou nesta vida, mas
está a ser muito difícil.
Sinto uma grande tristeza quando vejo esta Baixa, a
minha Baixa, chegar ao estado a que chegou. Não consigo entender a
irresponsabilidade geral, dos comerciantes e das entidades ligadas ao poder
decisório. O comércio tradicional tem futuro, tem é de ter uma oferta variada e
de qualidade. Se formos persistentes, se todos dermos as mãos, vamos vencer.
Vai ser uma guerra muito dura, isso não tenho dúvida.”
Rogério Eloy, o dono da
Lancelote, para além de ser um reputado comerciante, é conhecido, sobretudo,
pela sua disponibilidade em ajudar o próximo. Porquê? Interrogo. “Gosto de
ajudar as pessoas. Dá-me felicidade. É algo que vem cá de dentro, da alma.
Acredito que passamos por esta vida num constante aperfeiçoamento. Gosto de
chegar à noite e, em introspeção, fazer o balanço do meu dia. Gosto de praticar
a solidariedade. Sou católico, mas, verdadeiramente, a minha religião é o
desejo de felicidade, que deve ser um direito geral. Contrariamente ao que
imaginei, que o século XXI seria de luz para todos, vivemos uma época de
trevas. Assistimos a um salve-se quem puder. É triste verificarmos que o
egoísmo e a ambição tomaram conta de todos. No entanto, tenho a certeza, iremos
assistir ao longo desta centúria a uma transformação para melhor. Se Deus
quiser, este vale de lágrimas irá ser um avatar, uma metamorfose para a
divindade, para os nossos descendentes, que virão com muito amor e muita
espiritualidade.”
REFLEXÃO: UMA ESPINHA NA ALMA
(Foto da Web)
Mais uma vez aí esteve a semana
da Queima das Fitas. Embora este ano a Câmara Municipal, aparentemente, tivesse
colocado as 4h00 como limite no ruído, a verdade é que, parece-me, não esteve a
ser cumprido. Tal como em anos anteriores, o barulho, nestas noites, foi
ensurdecedor e perturbador dos mais elementares princípios do direito ao
descanso. A questão que se coloca é tão só interrogar se uma minoria de cerca
de vinte milhares de estudantes, em nome da tradição e do seu direito legítimo
de confraternização, pode continuar a importunar impunemente, com o beneplácito
das autoridades, mais de cem mil pessoas. Ninguém põe em dúvida que as
tradições devem ser preservadas mas com regras, e em que os interesses de
todos, harmoniosamente, devem ser mantidos. Estamos perante um reiterado abuso
dominante de uns sobre outros que se colocam de cócoras. Neste quadro de jugo,
social e psicológico, está muito da alma da cidade.
O ESPÍRITO DA REPÚBLICA
(Foto da Web)
Platão escreveu a República, no
século IV A.C., há cerca de 2300 anos. Toda a sua obra gira em torno da justiça,
esta, enquanto maior virtude de todas as virtudes. Convém lembrar a conceção de
justiça dada por Ulpianus (150-223), nos seus preceitos do direito: “viver
honestamente, não prejudicar ninguém, atribuir a cada um o que é seu.”
Lembrei-me de começar este texto
pelo grande filósofo, discípulo de Sócrates, e pelo colossal jurista romano exatamente
porque o que vou trazer à colação, a seguir, é uma antítese do que estes grandes
vultos da antiguidade clássica nos deixaram em herança na distinção entre o
justo e o injusto. O espírito das suas extensas obras transmite que enquanto
houver um injustiçado entre nós a humanidade não pode estar feliz.
Vem esta crónica a propósito de
os três maiores partidos, PSD, PS e CDS-PP com assento parlamentar, e
coadjuvados pelas estruturas locais da cidade, defenderem a manutenção da
salvaguarda de um regime de exceção para as 27 repúblicas estudantis de
Coimbra. A proposta, a ser discutida na especialidade na Assembleia da
República, preconiza que os contratos de arrendamento das ditas se considerem
celebrados por tempo indeterminado e de forma a excluir a possibilidade de
despejo. Dizem também que é essencial para a preservação das repúblicas que a
renda possa ter um valor limitado abaixo do teto máximo definido, porque os
estudantes não auferem rendimentos. O engraçado –sem graça- é a invocação da
“justiça cultural” para assegurar a sua vitalidade –este aflorar num país que
despreza a cultura, no mínimo, já faz rir. Ora, está de ver, pretende-se uma
“justiça cultural” em cima de uma injustiça focalizada, no caso, os
proprietários destes prédios. A estes partidos pouco importa que, em nome de
uma classe, se esteja a sacrificar os direitos legítimos de outra. O que
interessa mesmo é, em nome do pseudo superior interesse público, chamar para
todos nós a bandeira da propaganda panfletária.
Seguindo a mesma linha vazia de
conteúdo equitativo –que não é isso que nos deve mover, o que nos impulsiona é
o tratamento igual, justo, para casos desiguais-, poderemos fazer várias
interrogações. Por que deve apenas ser esta situação contemplada em exceção e
não outras, como, por exemplo, um estabelecimento comercial secular?
2 comentários:
Relativamente à Queima, Basta!!!!!!!
Gostaria de saber se os cafés da Portagem e arredores têm licença para estar abertos 24 horas.
São atropelos atrás de atropelos.
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