sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O AFINADOR DE MEMÓRIAS




 Antigamente, dizia o povo –no tempo em que havia povo- que sempre que aparecia um amola-tesouras era certeiro no dia seguinte vir a chover. Não acredito neste aforismo e muito menos quero saber se amanhã chove. O que sei e tenho a certeza é que é um encanto ver trabalhar aqui o já meu conhecido Carlos Manuel. Então quando ele começa a tocar a flauta para chamar os clientes é uma espécie de êxtase para os sentidos.
Bem sei que o desenvolvimento não se compadece com muitas profissões mecânicas e, como máquina centrifugadora, tritura em pedacinhos todos estes mesteres antigos para nunca mais os vermos ao vivo. Mas, tenho de confessar, é uma pena profissões como esta e outras não merecerem o mínimo de respeito por parte de quem manda. Este homem é muito mais do que um artífice. É um ícone de um tempo que passou e, dê lá por onde der, essa época não voltará. Por isso mesmo, se vivêssemos num país normal –onde a memória fosse muito mais do que um registo para a posteridade-, tentando evitar que ele não claudicasse nesta mostra social de excelência, seria normalíssimo e mais que justo que o Estado lhe concedesse uma bolsa de mérito profissional. A contrapartida seria a sua comparência em escolas básicas para que as crianças vissem que já trabalhámos assim –e não foi há muito tempo. Infelizmente, como se sabe, a cultura é o nosso parente mais pobre da nossa arrastada existência portuguesa.
Por outro lado, no meu largo, ao ouvir o barulho do afiar de facas, tesouras e outros metais, fiquei com uma certeza: a cidade, neste desenvolvimento feroz, não está mais rica. Pelo contrário, está indigente. Faltam-lhe os ruídos como este. Hoje em dia, vivemos em ruas herméticas, sem cheiros, sem odores a bifanas ou carapauzinhos. São avenidas de silêncio, a fazerem lembrar caminhos de terra batida, ladeados por ciprestes, os vulgares cemitérios.
Ainda há meia dúzia de anos este meu terreiro era um oceano de sons cruzados de velhos comerciantes a jogarem à moeda e no final iam à “tasca da Maria”, na Rua do Almoxarife. Hoje, porque algumas velhas lojas já encerraram, foram-se os gritos de “três”… “oito”… “zero”, foi-se abaixo o consumo da taberna, foram-se as pessoas.
É este desenvolvimento harmonizado que queremos e nos torna mais felizes?

2 comentários:

JPG disse...

Que bem se escreve por aqui!

Parabéns pelo texto e pela reflexão!

O "capador" como se chamava na minha aldeia, metia medo aos rapazitos, pois dizia-se que afiava as facas para depois castrar (capar) os petizes.

Há pouco tempo passou na rua onde moro e vim à varanda filmar um bocadinho, para guardar o som da flauta.

Bom fim-de-semana!

LUIS FERNANDES disse...

Obrigado pelo comentário, JPG.
É muito generoso. Volte sempre. É sempre com gosto que recebo os seus bem elaborados desabafos.
Bom fim-de-semana.