(IMAGEM DA WEB)
São nove e pouco quando transponho a porta da estação dos Correios, na Avenida Fernão de Magalhães, em Coimbra. Pelo número de pessoas na sala de atendimento e pelo número da minha senha facilmente verifico que, pelas cerca de mais de vinte unidades de diferença, vou ter de esperar muito tempo até chegar a minha vez.
Uma funcionária fora dos balcões, movendo-se agilmente por entre os que (des)esperam, e que me faz lembrar um antigo sinaleiro –mais propriamente o “eléctrico"-, dirige-se a mim e interroga-me acerca do que me ali levou. “Queria comprar um DEM, Dispositivo Electrónico de Matrícula", enfatizei.
-De Via-Verde com desconto bancário ou de matrícula com carregamentos? Interrogou.
-Com carregamento através do Multibanco –respondi.
-Um momento que vou ver se ainda há –e afastou-se para verificar.
Pouco antes eu fora ao "Correio do Portugal dos Pequenitos” e não havia. “Está esgotado. Para aqui só enviam dois ou três. Vá à “Fernão de Magalhães”, como é uma estação central, pode ser que haja lá", aconselhou-me a simpática funcionária, que já conheço há muitas décadas.
Havia dois, ainda, na “estação da Fernão de Magalhães”, informou, entretanto, a empregada que fazia as vezes de sinaleiro. Pediu-me para esperar. Logo a seguir dirigiu-se às outras pessoas: “não há dinheiro. Têm de aguardar!”
Enquanto esperava ia olhando o magote de gente, maioritariamente idosos, e ia pensando se a recente vaga de encerramentos de vários postos na cidade não teria sido a causa deste atrofiamento. Fui interrompido pela voz segura e autoritária da funcionária a dirigir-se às pessoas, que tinham um papel na mão –suponho que eram vales de recebimento-: “já há dinheiro! Aguardem um pouco!” –a turba de idosos, como crianças em busca de um prometido chocolate, avançaram todos para a caixa de pagamentos. “Alto! Cheguem-se para trás!”, gritou a “sinaleira”, certamente para que fosse mantida uma distância suficiente e para que não se visse quanto recebia cada um.
Ouvi outra vez a voz da sinaleira: “o senhor do DEM, onde está?” –e indicou-me uma caixa lá no canto direito e disse-me que mantivesse ali a minha vez.
À minha frente estavam duas pessoas. Um, ainda novo, estava a teclar no portátil, presumivelmente para não perder, em vão, todo aquele tempo em queima de lento fogo perdido. Reparei que uma funcionária tratou-o por “senhor doutor” –deveria ser advogado.
Entre nós os dois, a comprar a “Via-Verde”, estava a ser atendido um homem de cerca de 60 anos. A funcionária dos CTT, Julieta –reparei no identificativo-, deveria ter a mesma idade. Ela foi inserindo os dados no computador necessários e, às tantas, solicita:
-O seu o número de telemóvel? –era de preenchimento obrigatório, informou a senhora.
-Não tenho! –respondeu o cliente.
-Não tem telemóvel? -admirou-se a mulher numa primeira fase.
-E agora?! O questionário da Via-Verde não admite número fixo –retorquiu Julieta. Reparei que o homem começou a ficar nervoso. Parecia um nativo perdido em Nova Iorque.
-O senhor não tem o de um familiar? –alvitrou a senhora, tentando salvar o trabalho já realizado até aí.
-De cabeça não tenho. Não me lembro de nenhum –respondeu o senhor. Só se ligar lá para casa, para a minha mulher. Talvez tenha o da minha filha. (O presumível advogado emprestou o telemóvel e o homem ligou). Está lá? És tu, Maria? É o teu marido. Estou aqui numa embrulhada, nos Correios. Precisam de um número de telemóvel –e a ouvinte do outro lado lá lhe forneceu um número.
-O seu e-mail? – continuou a questionar Julieta.
-O meu quê?! –O homem ficou aparvalhado.
Eu não sei o que isso é. É dos computadores, não é? –interrogou novamente à procura de uma ponte de salvação.
-Sim, é uma caixa de correio electrónico. Mas não se preocupe, para aqui, para isto, não é obrigatório. Deixe lá, não fique assim -tentou contemporizar Julieta para acalmar o homem. Eu também não tenho e-mail. Também não percebo nada de computadores. Apenas sei o básico. Sou uma triste. Nem e-mail tenho –e sorriu para o homem. Este pareceu ficar melhor. Certamente a pensar que havia muitos mais “info-excluídos” do que ele próprio pensava.
Continuou Julieta: Já pedi várias vezes aqui na empresa que me arranjassem formação. Sinto-me uma analfabeta, percebe? Tenho um filho que entende muito de computadores mas não vive comigo. Não tenho ninguém que me ensine. Tenho andado a ver se arranjo um curso.
O homem respirou fundo, como se tivesse ficado mais aliviado. Não se sabe o que lhe iria no pensamento, mas, uma coisa é certa, Julieta ao dividir com ele o drama que a atormentava, talvez sem o saber, salvou o dia ao “velho” cliente dos Correios.
O ENTERRO DOS PORTAGEIROS
O DEM custa 37,50, já com um carregamento de 10 euros. Está bem à vista de todos que estamos perante uma medida que visa enterrar de vez as poucas centenas de portageiros que ainda vão resistindo na Brisa. Claro que ninguém se preocupa com isto. E muito menos se cerca de 40 por cento da nossa população portuguesa é “info-excluída”, isto é, não percebe nada de computadores. Isso não interessa nada!
A toda a força, temos, todos, de fazer parte de uma sociedade estandardizada, formatada, e obrigatoriamente temos de ser o que outros seres pensantes querem que sejamos. Onde fica o nosso direito à intimidade? É óbvio que em lado nenhum. Isso é coisa de outro tempo.
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