quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

UMA ANUNCIAÇÃO COM CRISTA




 Concorde-se e goste-se ou não do actual Governo, se formos intelectualmente sérios, uma coisa temos de admitir, coordenou duas questões prementes e legislou no sentido de lhe dar solução. Refiro, nomeadamente, a colocação de João Jardim no seu devido lugar e o “dossier arrendamento”. É certo que foi obrigado pela Troika, mas fez, e, só por isso, a meu ver, é de relevante importância.
Vou apenas debruçar-me sobre o arrendamento, que foi aprovado hoje em Conselho de Ministros. Naturalmente que ainda se sabe muito pouco, e, além disso, no Parlamento ainda irá ser aperfeiçoado, creio, mas, pelo que é anunciado, é uma pedrada no charco. Já se sabe que uma reforma que esteve emperrada, e viciada, durante quase um século, agora, de uma assentada, será difícil de agradar, quer a inquilinos, quer a proprietários. Os primeiros, porque, sobretudo no último meio século, com o argumento de que eram a parte mais vulnerável, estiveram encostados a mamar na grande teta dos senhorios. Ou seja, os donos dos prédios estiveram a substituir o Estado na assistência social domiciliária. Apoiados numa lei iníqua e abominável, exigindo e fazendo pouco dos donos dos prédios, mantiveram-se à sombra da bananeira, porque o clima era de resguardo e não valia a pena arriscar na compra de casa como outros fizeram. No procedimento destes inquilinos, os proprietários, ao longo das últimas décadas, foram uma espécie de saco de boxe, em que apanharam de todo o lado. Deles, inquilinos, das autarquias, que neste processo, apelidando-os de “grande capital”, foram sempre tendenciosas e incapazes de vislumbrar um pouco para além da nuvem, até porque a isso estavam obrigados –mas fizeram sempre letra morta-, porque era o interesse público que estava em causa –o estado lastimoso das cidades também se deve muito às câmaras municipais, pela sua displicência, apatia, arbitrariedade, parcialidade, excesso de legalismo e injustiça.

E ENTÃO O QUE É QUE VAI MUDAR?

 Segundo o jornal Económico, começa logo nos prazos de vigência de contrato. Deixa de haver prazo mínimo. Quem estabelece a sua duração serão as partes, segundo as suas conveniências. Logo nesta medida vê-se que o legislador se modernizou e, parcialmente, desjudicializou o arrendamento. Não fazia qualquer sentido o Estado, metendo-se onde não era chamado, vir a impor prazos mínimos aos contratos.
A celeridade nos despejos é outra boa nova. Segundo parece, depois de dois incumprimentos é possível despedir o inquilino faltoso sem mais delongas –o que acontecia até aqui era um absurdo. Em média, segundo os jornais, para exarar uma acção de despejo, o Tribunal demorava um ano e meio. Sei de alguns amigos meus que quando se deu a audiência já o réu tinha desaparecido há muito. Mais, encontraram os locados completamente destruídos por má-fé.
Ao que se consta, se não houver acordo na nova renda, vai ser possível indemnizar o inquilino em 60 meses. Aparentemente pode parecer injusto para o proprietário, mas é uma forma de, muitas vezes, se conseguir ver livre de um escorpião. Há casos que, pela possibilidade de resolução, o dinheiro deixa de contar. Ainda que possa mais uma vez beneficiar o infractor, pelo menos já há um instrumento para pôr fim a um casamento indesejado. Pelo menos a partir do momento em que a lei entre em vigor, vão-se os anéis mas ficam os dedos. Até agora, num conflito entre inquilino e senhorio, este, numa demanda judicial, perdia tudo: dedos e anéis.

E O QUE NÃO MUDA?

 Aparentemente as pessoas com mais de 65 anos, inquilinos com deficiência superior a 60% e outros com carência económica continuam com regime de excepção.
Ora mais uma vez o aforismo bate certo: o lobo nunca muda de pele. Perante este proteccionismo, estamos em presença de um continuado abuso de direito. Ou seja, o Estado continua a sustentar-se nos proprietários e a fazer deles a assistência social. Esta medida não é mais do que beneficiar o infractor, sobretudo os inquilinos com mais de 65 anos. Estes arrendatários, nas últimas décadas, foram os que mais lucraram com os arrendamentos congelados e agora, com o argumento de que são mais vulneráveis, são escandalosamente outra vez favorecidos. Este assumir de responsabilidades sociais é ao Estado que lhe cabe resolvê-las e não, outra vez, os proprietários, que já foram espoliados tempo demais. Mais ainda, porque razão é que, pelo simples facto de ter mais de 65 anos tem direito a protecção? Sobretudo se se provar que o inquilino tem uma reforma dourada, ou que aufere rendimentos maiores que o seu senhorio?

E ESTA REFORMA VEM NO MOMENTO CERTO?

 Esta nova lei do regime de arrendamento urbano não poderia vir em pior altura. Apanha todos vulneráveis e descapitalizados, quer inquilinos, quer senhorios. Pode dar origem a verdadeiros dramas sociais, se não houver alguma clemência –por parte dos proprietários- e sobretudo bom senso. Mas para isso, certamente que o tal “balcão de resolução de conflitos” estará empenhado em resolver as coisas da forma menos traumática possível.

E NO COMÉRCIO?

 Se não houver sensibilização perante os senhorios, vai acontecer uma catástrofe neste ramo comercial. Milhares de lojas, único sustento de famílias, até agora, têm-se aguentado graças à pouca renda praticada. Quando entrar a nova lei não resta outro remédio senão entregar o locado. Mas e quem lá trabalha, como é que fica se não tem direito a subsídio de desemprego? –É obvio que são questões para o Governo resolver e não o proprietário do edifício. Cada coisa em seu lugar.
O problema reside, mais uma vez e tal como noutras áreas, que se quer resolver em tempo recorde o que não foi feito em décadas. Depois acontece que perante “galinhas apressadas geram pintos carecas”.
Vamos ver no que dá, mas, em síntese, foi bom, finalmente, o Governo ter conseguido desmanchar este enguiço.


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