segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O DERRUBAR DO MURO, VISTO DA MINHA JANELA





Quando, em 1961, se começou a construir o muro que dividiu a Alemanha em duas, RFA e RDA, eu tinha 5 anos. Nem eu, nem ninguém lá em casa fazia a mínima ideia qual o seu significado e consequência para o mundo. Só anos mais tarde, já sabendo ler, passando a ser o primeiro na família, curiosamente, ainda hoje guardo na memória onde li uns apanhados sobre este caso. Exactamente num barracão, ao fundo do quintal, que, pelo buraco redondo na larga tábua, servia de evacuação de dejectos, e que, quase em provocação, se chamava de retrete. Não tinha água, nem sanita, ou bidé, utensílios que viria apenas a conhecer só uns anos mais tarde.
Nesse tempo, em que, antes de se transformar em matéria orgânica, tudo passava pelo crivo da utilidade. Era assim que, apesar de ninguém saber ler, os jornais, eram aproveitados para limpeza e, quem sabe, tornar leitor, o buraco evacuador.
Por incrível que pareça, lembro-me, de pela primeira vez tomar contacto com a divisão da Alemanha, a Guerra do Vietname e o caso da Herança Sommer.
É lógico que não falei com ninguém sobre o que li, nem me lembro se entendi. Mesmo que, hipoteticamente, o quisesse fazer, pela acultura política vigente na casa onde cresci, ninguém me saberia explicar.
Quando se deu o 25 de Abril, em Portugal, tinha eu então 17 anos e já trabalhava há cerca de sete anos. Apesar de estudar à noite, se me falassem em comunismo eu não saberia o seu significado.
Nos dias subsequentes à revolução dos cravos, na loja onde trabalhava, o patrão, perante as quase duas dezenas de trabalhadores, em curso intensivo, tratou logo de pôr os “pontos nos ii”. Ali quem mandava era ele, e greves, nem pensar. Os comunistas eram seres desprezíveis que era preciso evitar a todo o custo. Era uma filosofia pandémica que naquele estabelecimento comercial era preciso erradicar. Bom partido para se votar, na construção de uma sociedade moderna de livre concorrência era mesmo só o PPD (hoje, PSD).
Tanta repulsa aos marxistas teve o condão de me estimular a leitura sobre o tema. Embora, diga-se, nunca me influenciou. Embora tardiamente, tentava perceber o mundo no seu sistema bicéfalo. Nunca me interessei pela política. As minhas preferências iam inteirinhas para conseguir uma estrutura económica e financeira que me permitisse ter e um dia, quando constituísse família, dar uma vida melhor aos meus filhos do que a que tivera até aquele momento. Evidentemente que ia lendo um pouco de tudo e, curiosamente, sem pender para qualquer interesse ideológico, durante alguns anos, comprei o “Diário”, que era um jornal conotado com o partido Comunista.
Era assim que lia acerca de Álvaro Cunhal, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, etc.
Por acasos do destino, em 1982, então com 25 anos, estabeleci-me com um café numa denominada “zona vermelha” da cidade. Por pouco, ainda devido ao clima revolucionário que se vivia, não era feito em picadinho pelos mais acérrimos defensores de Cunhal. Alguns deles, perante a minha audácia em me implantar numa área revolucionária, fizeram-me a vida negra, e chegando a afirmar na minha propriedade que ali quem mandava eram os comunistas. Numa primeira fase, tentei ir na onda mas não dava. Cada vez era mais desrespeitado. Então, dentro daquele pequeno café fiz uma revolução: servia todos por igual, mas quem mandava era eu, que era o dono. Durante um ano, passei por coisas que não lembra ao diabo. Fizeram-me trinta por uma linha. Partiram-me mesas, o nariz, e até a cabeça. Evidentemente que onde podia chegar também dava. A seguir a cada refrega, movia uma acção no Ministério Público –nessa altura, qualquer participação por danos materiais ou contra a integridade física ia direitinho para julgamento sem ser preciso deduzir acusação particular. E foi assim que me livrei de tão incómodos idealistas. Fiz-me amigo de outros comunistas de bem, e estive com esse café mais de 12 anos. Se talvez para a maioria, não deixei saudades, para muitos, tenho a certeza, ainda hoje sou recordado com amizade.
Continuei a ler e a não me interessar pela política partidária. A vida familiar, já com filhos, levava-me toda a preocupação. Vivi a década de ouro, na expansão económica de Portugal (1986/1996), devido à adesão à então CEE e pelos subsídios enviados para o país, que alterou profundamente o poder de compra dos nacionais.
Vi então, na televisão, num Outono ainda cheio de esperança para os portugueses, cair o Muro de Berlim. Lembro-me, perfeitamente como se fosse hoje, de ver e ouvir Álvaro Cunhal afirmar que não era por cair um símbolo que iria alterar as suas convicções. Naquela frase, fiquei a admirar aquele homem pela sua profunda fé na sua ortodoxia. Quando a maioria dos seus correligionários, como ratos a abandonarem o navio, transmutavam o vermelho rubro para cores de laranja e rosa, ele, como trave de madeira de cerne, mantinha-se firme nas suas convicções.
Com Cavaco Silva como timoneiro do barco luso, tudo indicava que estávamos no bom caminho. Porém, uma coisa me deixava apreensivo: o constante abate da agricultura e a reforma compulsiva dos seus trabalhadores.
Em Portugal vi morrerem todos os ideólogos, os símbolos da esperança num homem novo, como Cunhal, Zeca Afonso e outros e não serem substituídos. Em vez do idealismo heróico, quixotesco, materialmente despretensioso, saído do Maio de 1968, em França, surgira um novo “homo economicus”, apenas preocupado com o seu individual bem-estar. A bicefalia do sistema dera lugar a um processo sistémico. Ou seja, o sistema ficou afectado e, endemicamente, contagiava tudo em seu redor. Em nome da democracia, agora com uma só cabeça, como touro mitológico, praticamente a ocupar todo o espectro mundial, tudo valia. Por falta de alternância, passou a ser a nossa única galinha de ovos de ouro.
Passou a falar-se em “Estado de Direito”, “eleições livres”, “justiça social” e mais “prosperidade”. O problema é que o “Estado de Direito” passou só a ser para alguns, as “eleições livres” tornaram-se como as revistas de sexo: com o tempo, deixamos de lhes dar importância. E é assim que hoje a abstenção anda em média por volta dos 50 por cento. A “justiça Social” passou a ser um autocolante distribuído pelos políticos partidários em campanha eleitoral. Nem eles, nem ninguém já acreditam nela.
A “prosperidade” assenta hoje numa economia que nos afoga. Onde a felicidade interna de cada um deu lugar à depressão, solidão e preocupação com o dia de amanhã. A prosperar mesmo, vê-se, é uma classe oligárquica que, através dos partidos, ascende aos melhores lugares e neles colocam toda a sua família e amigos. É nesta “prosperidade” que os sonhos dos mais novos e a realidade dos mais velhos se esbatem na displicência e no desprezo pelas ideias de tudo o que seja novo. Só se arrisca no certo. Só os bafejados materialmente pela riqueza têm direito a concretizar as quimeras. A utopia de um novo sistema que nos livre das amarras do economicismo desapareceu. Cada vez se vive mais com medo. Onde a defesa dos tão propalados direitos individuais se esboroa numa justiça medieval.
A liberdade, a tão propalada liberdade, é cada vez mais uma bandeira panfletária, toda crivada de buracos, onde a vontade de gozar a manumissão, pela insegurança crescente, deu lugar ao receio de existir. Parafraseando Thomas Brussig, escritor alemão, “Um Estado que garanta as liberdades civis (liberdade de imprensa, liberdade de opinião, etc.) não produz automaticamente pessoas livres. Ser uma pessoa livre é tarefa de cada indivíduo no dia-a-dia (…) Se tiveres dinheiro, é mais fácil ser livre. A liberdade é um ideal importante e tentador e, ao mesmo tempo, uma promessa pela qual é fácil deixares-te enganar” –esta citação foi retirada da revista “Pública”, do jornal Público de ontem.

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