sábado, 30 de junho de 2007

ADEUS BIJU

A Biju morreu! Nos últimos cinco anos, habituei-me a vê-la, com o seu ar ladino e traquina, como se, com a sua luz resplandecente, fosse, metaforicamente, um candeeiro de luz intensa que ilumina tudo em redor. A Biju morava na Rua Eduardo Coelho, nº58, mais conhecida por Rua dos Sapateiros, na Baixa de Coimbra. A Biju era parte integrante da rua. Com a sua morte, vai, também, um pouco de todos nós, da nossa vivência diária e um pouco do espírito societário e urbano daquela artéria. Com a sua morte também um pouco da rua se vai, como lágrimas se esvaindo pelo intervalo das pedrinhas da calçada. A Rua dos Sapateiros ficou mais triste e desoladora. Sem o movimento anímico da Biju esta rua não voltará a ser a mesma. A Biju foi assassinada. O seu corpo, ou que restava dele, foi trasladado, no sábado, numa carreta de duas rodas, a fazer lembrar o transporte dos féretros de há trinta anos. Contrariamente ao que acontecia há três décadas, na sua última viagem, apenas duas pessoas a acompanharam: o Nuno e a Cristina. O Nuno, de olhos encovados e ar triste, fazendo um esforço hercúleo para não chorar, talvez agarrado ao velho aforismo de que um homem nunca chora. A Cristina, como mulher, mais prática e sem raízes nos adágios populares, de olhos vermelhos, chorava a bom chorar. Ali, como se imaginariamente se ouvissem os toques de finados, naquele carro simples de duas rodas, ia um pouco das suas almas e parte das suas vidas. A Biju não teve direito a discurso que encomendasse o seu corpo. Ninguém, ou poucos se aperceberam do súbito desaparecimento da Biju. Talvez na semana seguinte, quando se aperceberem do papel na porta a anunciar a sua morte, então, em jeito de comentário, entre o lamento pesaroso e a volúvel indiferença, muitos dirão: “A BIJU MORREU!”.
A Biju não era uma mulher. Era uma casa comercial que se finou. Mais uma que se apagou. Muitos dirão, com a costumada insensibilidade e desinteresse, que é a lei da vida, ou melhor a lei dinâmica do mercado livre ou, como sói dizer-se, a economia de mercado: uns nascem e outros morrem.
Porém, há um pormenor, a Biju morreu assassinada, por homologia. Morreu devido há insensibilidade e ganância do proprietário da loja para com o seu inquilino. A Biju pagava de renda dois mil euros e, ainda, mais IVA, o que dava, no total cerca de dois mil e quinhentos euros. Esta verba até poderia estar bem há cerca de cinco anos atrás. Hoje, restou-lhe claudicar perante a insuficiência de clientes diários e, por essa decrescência, a impossibilidade de pagar tal montante de renda.
Sou um defensor da economia de mercado, embora sem esquecer as regras legitimadoras e essenciais ditadas pelo Estado, enquanto parte interessada na defesa dos mais débeis, que permitam aos mais pequenos sobreviverem entre os gigantes. Para que as relações contratuais se não tornem no princípio da selva, ou seja a lei do mais forte. E aqui, neste caso, pelo menos no tocante ao contrato de arrendamento bilateral estabelecido entre inquilino e arrendatário, não poderão ser assacadas culpas ao Estado.
Trata-se, isso sim, duma questão moral e ética. O proprietário da loja foi durante décadas comerciante nesse mesmo local. Sabe, fruto da sua anterior experiência, que aquela renda, hoje, com o contraciclo da economia, é impossível de pagar. Está no seu direito? Sem dúvida, a casa é dele e, no âmbito do direito, quanto a isso não se contesta. Mas, embora as regras morais não tenham força obrigatória geral -isto é, como no direito, em que são sempre acompanhadas de uma vis, uma força centralizada, essencialmente, nos órgãos policiais- a verdade é que devem sempre transcender a lei. Devem estar entrosadas nos princípios que nos regem. Quando assim não acontece, tornamo-nos numa sociedade legalista, em que apenas se faz o que a lei manda, como autómatos, sem sentimentos e sem emoções, com um cérebro virado para o calculismo, sempre com uma interrogação presente: o que é que eu ganho com isto? Em que se ajudará o próximo, apenas e só, se daí provier interesse ou a lei o prescrever. Infelizmente, cada vez mais caminhamos para essa forma legalista, rasteira e interesseira de encarar o outro.
Ora, neste caso da Biju, estamos perante um modelo nato e acabado, onde o interesse individual desmesurado, mesmo dentro da lei, transcende a própria relação contratual a dois, para tocar no interesse geral que são os restantes comerciantes.
Claro que podemos pôr a hipótese de o senhorio, possivelmente, arrendar facilmente a loja a chineses, uma vez que este povo do oriente, sem o querer, penso, está a inflacionar as rendas comerciais nos centros históricos. Mas põem-se a pergunta: então as Baixas comerciais vão ser, no futuro, apenas lojas de artigos baratos da China? Com todo o respeito por estes comerciantes. Mas o que ao longo de séculos tornou os centros históricos atractivos foi a sua amálgama de comércio representativo de vários ramos identificativos da nossa cultura de antanho. Se acontecer esta concentração de comerciantes chineses, estes centros comerciais a céu aberto cada vez mais se tornarão desertificados, desinteressantes e identificadores de uma cultura indígena para se tornarem em “Chinatowns”.

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