O AJUSTE DE CONTAS DO INADAPTADO
Luís é um toxicodependente que vagueia pelas ruas e vielas de, cariz medieval, de Coimbra. Durante o dia, vive de pequenos esquemas: ora entra numa livraria e, sem grande esforço, surripia um livro, último título de escaparate -e que mais tarde venderá a um qualquer passante por meia-dúzia de Euros; passa numa frutaria, com expositores, e, sem grande esforço, retira duas maçãs; vai uma pequena superfície comercial e abastece-se para o dia, passando na caixa sem a maçada de ter que estar na fila. Às vezes, quando os santos não estão do seu lado, tem o azar de ser apanhado, mas Luís confia que, como furta muito pouco de cada vez, certamente, os donos das lojas não irão, certamente, chamar a polícia. E, quando, algumas vezes chamam, já lhe tem acontecido, vai até à Esquadra, é identificado, e volta novamente à rua, onde é rei e senhor do seu vasto império. Dormir também não é problema. Há sempre uma casa velha, decrépita, onde pode pernoitar sem grande incomodidade. Há sempre um pormenor a ter em conta: o aspecto. Ele sabe, fruto de alguns anos de experiência, que apresentar-se bem é um trunfo a seu favor. O parecer é meio caminho andado para ter, como quem diz, para poder entrar e sair de qualquer loja, com uma camisola vestida, sem pagar e sem grandes problemas de maior.
Quando fala, sabe o que diz, tem uma lábia e uma cultura vasta. Luís não estudou na Universidade por acaso do destino. Não porque não tivesse capacidades artísticas e de inteligência, mas porque nunca se esforçou para o que quer que fosse. Além de mais, para pior, conheceu e enamorou-se da heroína. Foi um amor à primeira vista, como dizem, para toda a vida. O rapaz dorme e sonha com ela, faz amor e, nas longas canseiras do dia, não passa sem a sua amada e companheira, a sua heroína. Ele sabe, que é um amor predestinado ao abismo. Por esta paixão largou o seu lar, deixando em seu lugar, um silêncio, só quebrado pelas lágrimas copiosas que, amiúde, teimam em correr na face de sua mãe e pelas desavenças e constantes discussões travadas entre esta e seu pai. Cada vez discutem mais, o raio dos velhos teimam em se acusarem mutuamente de culpabilização no fracasso educacional do filho. O pai culpa a mãe porque esta sempre desvalorizou e, tantas vezes, desautorizou as orientações por si exigidas. A mãe culpa o pai porque este, ao longo da vida do Luís, sempre se preocupou em ganhar dinheiro, sem “dar atenção ao miúdo”, segundo as suas palavras. E, mesmo sabendo que jamais haverá tréguas, nesta guerra parricida e nunca chegarão a acordo, mesmo assim, diariamente, as farpas saem disparadas, sempre das suas bocas, como balas de G-3, de modo a causar no adversário o máximo de estragos físicos e psicológicos. Habitualmente, estas batalhas verbais, são à noite, quase parecendo que funcionam como ensaios de descompressão do stress do dia, e até o gato pantufas e a cadela Geraldina já dão estes longos e intempestivos barulhos como sons que fazem parte da rotina diária da casa, e aceitam-nos como se tratasse de um concerto de música de câmara.
Mesmo sabendo ser o causador deste desequilíbrio matrimonial, e já farto de tantas quezílias, não foi difícil ao Luis fazer-se de vítima e deu de frosques. Até porque começava a sentir-se muito limitado naquele pequeno universo, apesar de a mãe, às escondidas do pai, todos os dias lhe pôr no bolso uma notinha. A verdade é que só tem saudades da mãe, -melhor dizendo, mãe-galinha- do pai, nem um pouco. Este, era demasiado cáustico e duro para o seu gosto. Estava constantemente a lembrar a sua desgraçada infância, “que nesse tempo era assim…era assado … tinha começado a trabalhar muito cedo…que tinha andado descalço…que esta juventude é rasca e irresponsável”. Fogo, quem mandara ao pobre homem dar-lhe tudo? Aquela consola de jogos, que mal anunciavam na televisão e logo era comprada, aquele brinquedo telecomandado, toda aquela roupa de marca, pensava o luís, aumentando ainda mais a revolta contra o pai. A verdade é que não deveria ter comprado mesmo. Mas o rapaz tinha bem gravado na memória, sempre que iam ao shopping comprar, o ar embevecido do seu progenitor, era como o pai, ao adquirir aquele brinquedo, o estivesse a fazer para si, para seu gozo pessoal. Como se, tardiamente e como metáfora espiritual, o brinquedo fosse preencher uma lacuna, a satisfação de um desejo recalcado de infância. Era como se o velho se projectasse no filho. Claro, está, que tudo o que lhe dava era com muito gosto, mas também é verdade que Luís passou a sua infância nos anos de ouro da economia portuguesa, fruto da adesão de Portugal à Comunidade Europeia, na altura CEE. O velho coitado, para proporcionar uma vida diferente, ao filho, daquela que tivera, estabelecera-se por conta-própria, trabalhava noite e dia mas como, nessa altura, até a vender chupetas à porta da maternidade era negócio de sucesso garantido, ele, apesar do esforço físico, pode dar o que não recebera.
O Luís, desde muito cedo, começou a sentir que, viver neste mundo, era uma maravilha de encantar. O esforço nunca foi com ele e o trabalho, esse esquizofrénico oposto de Epicuro, deixava para o pai. Até ao 9º ano chegou sem grandes dificuldades, arrancar daí é que foi o camano. Foi mudando de escola para escola e o problema, de inadaptação, naturalmente, como se calcula era…da escola. Digamos que os estabelecimentos de educação e cultura não se adaptavam ao rapaz. Inteligente e bonito, cedo começou a namoriscar mocetonas “vintage”. Com dezasseis anos, na companhia de outros amigos, começou a fumar umas “ganzas” para mais facilmente enfrentar a turba, porque começou a notar que afinal viver não era tão fácil quanto julgara e para sobreviver, no meio destas hostes só recorrendo a analgésicos e entorpecentes. Quanto mais fumava mais deprimido ficava e voltava a fumar para muito mais deprimido acabar.
A recorrência a psicólogos e psiquiatras passou a ser uma constante e o Luís não melhorava. Cada vez dormia menos de noite e mais de dia. A luz do sol funcionava como um catalisador, que alterava a sua velocidade física e as suas reacções químicas.
Até que, farto de se sentir incapaz para fazer o que quer que fosse, ou, simplesmente, reagir à sua apatia endémica, veio então a abandonar a casa de seus pais e entregou-se à rua, de braços abertos, abraçando a liberdade de, com pouco suor tudo ter, e, largando a ambição material, tudo poder ser.
Nos últimos meses, o Luís, durante a noite, já partiu várias montras de muitos estabelecimentos. Agarra num qualquer calhau à mão e arremessa-o contra os vidros, como se, juntamente com a pedra, voasse também a sua frustração e ficasse mais leve.
Há dias, foi apanhado em flagrante delito e foi para a esquadra. Obviamente, que, depois de levantado o auto, foi libertado. Ontem, de noite, cerca das 2,30 da manhã, mais uma montra foi abaixo na Rua da Louça. Quando lhe perguntei o que o levava a praticar este acto de vandalismo ele respondeu: “SEI LÁ!”
LUIS FERNANDES
(COIMBRA)
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