sábado, 2 de junho de 2007

HISTÓRIAS DE VIDA-AS PRENDAS DA MILÚ

AS PRENDAS DA MILÚ
D. Licas, dama de muitas virtudes, cujas primaveras o tempo apagou da sua memória, é uma senhora muito prendada, de gestos finos e delicados, plena de boas maneiras, sempre a autocorrigir-se, exigente consigo e com os outros, um modelo de pessoa muito sui generis.
Quando interpelada, torna-se impertinente, empertigada e exige sempre ser tratada de menina –“A menina isto…a menina aquilo…- e jamais de você. “Você é estrebaria”, replica D. Licas, exaltada, quando alguém, nestes termos impróprios, assim se lhe dirige. “Que saudades do meu tempo! Antigamente é que havia respeito, hoje não…!”-desabafa, desolada, a velha senhora.
A menina Licas ficou solteira. Quis Deus e o destino que os homens de H Grande fossem poucos, ceguetas, e não reparassem nas suas magníficas qualidades humanas e grandiloquente e extremosa beleza. A menina nunca lhes perdoou tamanha afronta e, com o passar do tempo, foi-se tornando introspecta e solitária. Não é que não tivesse muitos pretendentes, mas queriam gozo antes do casamento e, sem aliança no dedo, nem um beijo sequer, isso é que era bom! –homessa! Licas não era dessas.
Mas a solidão é um buraco e, assim sendo, qualquer coisa serve para o tapar. E a menina só sofreu dessa angústia até conhecer a Milú. Melhor dizendo, a “menina” Milú, como é carinhosamente tratada pela D. Licas.
A “menina” Milú é uma “boneca” de quatro patas, o mais belo e cobiçado exemplar canino que a natureza criou. Pêlo sedoso, luzidio, bem tratado e perfumado. Inteligente; tão inteligente que até entende a dona, quando esta trava consigo longas conversas sem nexo e sem fim.
Seguindo os hábitos da sua mestra, não dá confiança a qualquer um –entenda-se rafeiro, obviamente. Quando passeia, de porte altivo, presa pela trela da sua protectora, sente-se uma rainha. Com passos aveludados, erecta, de estudada volúpia, um lânguido e libidinoso brilhozinho nos olhos, sente que é seguida por mil olhares caninos. É um deleite ver os pobres canídeos espumarem de desejo e de raiva. Ficam como petrificados, de queixo em baixo e baba a correr sem fim. Mas, tal como a sua dona, há-de morrer virgem. Não será um qualquer vira-latas que irá usufruir de tão belos prazeres carnais. Ou não estivesse atenta a menina Licas.
No prédio, onde mora, é normal os vizinhos –esses empedernidos alcoviteiros, como são apelidados, “carinhosamente”, por Licas- ouvirem, diariamente, até altas horas da noite, diálogos acesos, misturados com latidos, travados entre dois seres tão, aparentemente, diferentes, mas tão unidos pelo mesmo sentimento. Ora são ordens cortantes, como disciplina militar num campo de treinos, ora são interrogações violentas, para logo a seguir, como arte mágica, virem as respostas soletradas amorosamente pela menina Licas: “sabes que horas são??...Não vês que já é tarde?!!...São horas de fazer óó…Miluzinha querida...!”
A menina Licas mora no centro histórico, há mais de cinquenta anos, numa rua estreita, por onde passou o Eça, como gosta de dizer. Habita um andar degradado, mas também o que é que se há-de fazer, não encontra o safado do senhorio! “Vejam bem que pago, por mês, dois contos na Caixa?!...Uma fortuna há cinquenta anos! –replica com ar de grande solenidade- e agora o malandro não quer saber do que é seu!...Admite-se uma coisa destas? As leis estão sempre pelo mais forte…” –desabafa, inconformada e inconsolável a menina Licas.
Antigamente saía pela manhã a passear a Milú pela baixa. É claro que, como animal, este bijuzinho tem necessidades fisiológicas e, normalmente, fazia-as junto às portas das lojas comerciais. “Que raio de mania havia a “menina” de apanhar”, pensava, com interrogada comiseração, a menina Licas. Mas são gostos e gostos não se discutem, respeitam-se! É preciso ter tolerância e paciência com os outros seres. E lá nisso, D. Licas tem muito jeito para os animais. Até pertence à Sociedade Protectora, coitadinhos dos bichinhos que são abandonados por todos…-costuma apregoar, a quem a quer ouvir, com rosto fechado de pesar.
Porém, havia um senão: os comerciantes não davam valor às prendas que a Miluzinha deixava às suas portas. “Gente ignorante e mal agradecida…é o que são! Então não sabem que um presente de animal à porta pela manhã é negócio todo o dia?”-interroga a doutorada em ciências populares. Vai daí, começaram a lançar olhares pouco amistosos à rainha das cadelas. Por pouco não havia luta se a Miluzinha, tão delicada, coitadinha, não se encolhesse e fugisse para os braços da sua amada e protectora. Perante as circunstâncias, a menina Licas teve de mudar os hábitos à sua “mais-que-tudo” Milú. Agora passeia à noite e é ver, com alegria, a esplendorosa donzela canina a defecar livremente às portas, nas ruas, nas vielas e onde lhe apetecer. “Isto é que é liberdade”, exclama a D. Licas para a Milú, que não responde por estar ocupada em deixar mais um presente, grande e bem cheiroso, mesmo no centro do Largo.
Mas a miluzinha tem um desejo secreto: deixar as suas prendas à porta da Câmara Municipal. “E porque não, se não há regulamentação que o proíba?”-interroga, com ar ensoberbecido, a menina Licas

LUIS FERNANDES
COIMBRA)

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