Quem tem a pachorra de ler o que escrevo, certamente, já viu que procuro ser um especulador (do latim, "observador"), ou melhor, um provocador. É como se me colocasse atrás do espelho a apreciar a reacção daquele que se mira e recebe daquele a sua imagem reflectida. Não sei se aceita passivamente, ou não, o que vê sem interrogação, mas mesmo assim, metaforicamente, através da mensagem, como neste caso, tento transmitir, inculcando a desconfiança da verdade que é reflectida e mostrar que, como dizia Pablo Neruda, “a verdade…é que não há verdade”. E partindo desta premissa, considerando-a como mais uma verdade entre tantas ou entre nenhuma, procuro abrir uma janela ao cepticismo: temos inevitavelmente de duvidar da sinceridade do espelho. Por outras palavras, procuro “abanar” alguns unanimismos, provavelmente, na maioria das vezes, lançando a confusão e até defendendo o inverosímil, mas se conseguir que alguém reflicta sobre o meu ponto de vista, dar-me-ei por muito satisfeito. Não tenho a veleidade de atingir os centros decisores, para esses, estes escritos são despiciendos e votados ao ostracismo. Não tenho nenhuma dúvida.
Depois desta pequena introdução, ou retratação, vamos ao assunto que me levou a escrever: há cerca de 15 anos que todos os políticos eleitos em representação da cidade e os agentes associativos vêm falando, falando, acerca daquilo que entendem de, per si, de melhor para a Baixa. Os primeiros remendando aqui, cosendo acolá, os segundos sonhadores como Quixotes, a verdade é que a Baixa não pára de deslizar para o abismo, como quem diz, de estar cada vez mais de tanga, porque ao longo desta década e meia, para camuflar o aspecto miserável, foi-se cortando as calças, debaixo para cima, e hoje o que resta é pouco mais do que um simples farrapo a tapar as partes pudibundas. Então é inevitável a pergunta: alguma vez, verdadeiramente, souberam estes senhores políticos o que queriam, ou o que era essencial para que esta parte histórica se mantivesse vital? E aqui incluo a Alta. Tiveram alguma vez um projecto de fundo para estas zonas monumentais e comerciais? A resposta é óbvia: nunca tiveram um plano capaz! Estas zonas, ao longo deste tempo, têm sido balões de ensaio com resultados negativos, entre PRAUD, RECRIA, REABITA, PROCOM e agora MODCOM, isto no respeitante à reabilitação do edificado e na revitalização do comércio. E então, sobretudo no respeitante ao fluxo de trânsito, sem se saber exactamente o que se pretende, têm sido uma desgraça -lembremo-nos da Alta no que deu as alterações ao tráfego na zona da Sé Velha e aqui na Baixa, com a quase obsessão de expurgar o trânsito automóvel de todas as ruas. O resultado é catastrófico, pelo desaparecimento de muitas actividades comerciais, serviços e moradores por falta de mobilidade. Ainda ninguém percebeu que mudaram os tempos e o que se implementa hoje é completamente anacrónico. Estaria certo há duas décadas, quando os centros históricos eram superpovoados. Nesta cobaia experimental, o que se tem vindo a fazer sucessivamente é a aplicação de antibióticos e analgésicos sem se ir ao fundo do problema, como é o caso das reuniões da semana passada, quer no Governo Civil quer na Junta de Freguesia de São Bartolomeu. Se não, vejamos o que foi reivindicado: mais policiamento, mais iluminação e mais animação. E muito bem! Já se sabe que estas reclamações vão ser atendidas, pelo menos até baixar a poeira, depois tudo volta à modorra habitual. Como sempre foi.
Porque não se encara de uma vez por todas que é preciso revolucionar o urbanismo comercial? Não é preciso ser economista para ver que mais de metade das lojas comerciais da Baixa vão ter de desaparecer e dar lugar a um outro tipo de comércio alternativo ou até restauração, em que seja incluído programas musicais até às 02 horas –o Salão Brazil, com o jazz, pode ser entendido como um bom modelo. É claro que para isso é necessário a compatibilização entre os órgãos directivos do comércio, a autarquia (incentivando projectos) e os moradores residentes. Sabe-se que esta harmonização não é pacífica, mas todos devem entender que ou se facilita ou tudo se vai e cada vez mais esta zona, sem atractivos, torna-se-à terra–de-ninguém.
E não foi por acaso que disse que mais de metade destas lojas vão ter de desaparecer. Ainda há pouco foi publicado um estudo científico da Universidade Católica, em que os centros comerciais são cada vez mais preferidos pelos portugueses em detrimento do comércio de rua, e, sobretudo, defendendo o alargamento dos horários de abertura, inclusive, ao domingo. Diz-nos também este estudo que os indivíduos com mais de 45 anos são os que não têm por hábito frequentar as grandes superfícies. O que daqui se pode extrair que o futuro dos centros históricos passará, inevitavelmente, pela captação de jovens para outras actividades alternativas. E então surge uma pergunta crucial: faz sentido continuar a apostar na modernização do comércio através de programas como o MODCOM? Sobretudo aquele comércio que é considerado excedentário? Não deveriam os políticos e as associações alertarem para aquilo que parece ser um incentivo, poder tornar-se numa morte anunciada ingerindo um rebuçado envenenado? No sentido em que vai endividar ainda mais os comerciantes, sem que lhes sejam adicionadas melhores contrapartidas e é completamente contrário ao que tudo indica ser o futuro e o que se pretende para a revitalização dos centros históricos? Além disso, falar em “modernização” começa a ser um chavão que não surte qualquer efeito, está demasiado gasto pelo atrito entre o comércio tradicional e a grande superfície. Tentando salvar vidas da insolvência e não tratando os comerciantes como "atávicos", como peças de uma engrenagem enferrujada, não seria menos traumático e de maior lisura o aconselhamento e o financiamento para uma reconversão para outras actividades? E assim evitando a sua crescente agonia, fruto do seu individualismo e determinismo cego, e que evitasse o fatal encaminhamento para o suicídio colectivo e arrastando consigo, para a morte, os centros das cidades? Quando é que os gestores da polis entendem que o comércio de rua, os cafés e o bulício dos seus residentes são a animação constante e a alma das cidades? Tente-se ao menos salvar os que restam!
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