sexta-feira, 1 de junho de 2007

D.QUIXOTE E O "LIXO" URBANO



Tudo começou no Café Santa Cruz, quando o “Aspirante” –personagem típica, cheio de “percings” nas orelhas e anéis nos dedos, que vagueia pela Baixa, notoriamente com deficiência mental, me viu e com algum manifesto efusivo contentamento, reivindica: “café…café…tu és Deus…tu és tio-avô…mi dás?” Saliento que esta pequena dádiva líquida tem sido a forma, adoptada por mim - substituir dinheiro- porque é habitual o rapaz, durante a tarde, embriagar-se. Então, com beicinho enternecedor, é usual o desamparado de senso, com voz mendicante, rogar: “mi dá xinquenta…nã mi dás?...Mi dás manhã?…Tês ò quato?...Nõ mi dás? –E aqui a sua fisionomia transforma-se em máscara de raiva- “Pum…pum!..morreste..morreste!...Mi aspirante…tropa”.
Juntamente com outro amigo, sentámo-nos os três. Seriam cerca de 13.15 de um daqueles dias de Abril. O “Aspirante” bebeu um café e comeu um pastel de carne. É então que nos apercebemos do estado lastimoso em que este tinha um dedo de uma das mãos: Inchadíssimo como uma cenoura de cor roxeada. Verificámos que tal patologia estava a ser causada por um anel em chapa que lhe bloqueava a irrigação sanguínea ao dedo anelar. Quando lhe tomei a mão e tentei verificar melhor o “Aspirante, talvez com provável sofrimento, retirou-a imediatamente. Perante a gravidade da enfermidade, liguei para o 112, ao que, telefonicamente, me foi comunicado que este serviço não podia intervir porque, em face do cumprimento da Lei de Saúde Mental, só poderão transportar doentes quando estes manifestem vontade de auxílio hospitalar, exceptuando acidentes graves com traumatismos físicos incapacitantes. Debalde tentei explicar à médica que se tratava de um alegado deficiente mental, provavelmente interdito. Não senhor, não havia a mínima possibilidade. Eu que o levasse ao hospital.
Cerca das 13,40, fui à 2ª Esquadra da PSP. À porta, dois ou três agentes a conversar. Expliquei ao que vinha e mandaram-me esperar. Como eram cerca das 13 e 55, e eu sem ser atendido, perguntei se, por acaso, a secção de atendimento reabriria às 14 horas. Não senhor –explicou um agente- estava na hora da rendição e o graduado de serviço estava a fazer o escalonamento e a distribuição do pessoal. Chegou então o graduado –um tenente- ao que explanei a situação que, a meu ver, requeria a intervenção da PSP, uma vez que o 112 se desonerara dessa missão por impossibilidade legal. O chefe foi dizendo que eu não sabia quem era o “Aspirante”. Que o conhecia bem e se tratava de um individuo violento, que já dera imenso trabalho à Polícia –na forma como olhava para mim, algo agastado, inferi que ele tentava compreender, sem o conseguir, o motivo porque estaria eu ali e pensava: “o que levará este sujeito a vir para aqui? Será louco? O que ganhará ele com isto?” -Saliento, mais uma vez que esta dedução é um juízo de valor percepcionado por mim.
Mas… chefe, insistia eu, esse é um assunto acessório, trata-se de uma questão humanitária, ele é deficiente mental. “Pois…é complicado, a mãe já veio para aqui discutir…(porque acha que todos o tratam mal)… mas é um requisito para o Ministério Público”-respondeu. Se é…eu vou lá, respondi. “Não!…Vou mandar dois agentes à sua procura”. Saí com a convicção de que nada iria ser feito. Passado cerca de uma hora veio um agente identificar-me ao meu trabalho, que seria para elaborar um processo, justificou-se.
Passados oito dias, encontrei o “Aspirante” ainda com o anel e com o dedo já em ferida e com um ligeiro odor a pútrido. Fui ao DIAP (Departamento de Investigação e Acção Penal) para que fosse o Ministério Público a chamar a si a responsabilidade de mandar intervencionar o rapaz. A funcionária, simpática, ao meu pedido, respondeu que esta entidade nada poderia fazer. Ali só tratavam de crimes e, portanto, nada poderia fazer. Se ali só tratavam de crimes, queria fazer uma participação contra a PSP, inferi. Poderia participar da PSP, mas, inevitavelmente, esta reclamação seria arquivada. Bom se é arquivada, não valerá a pena, nesse caso participo na Procuradoria Geral da República, em Lisboa. Mas, interrogo; a omissão (ou negação) de auxílio à vítima não é crime? Não está consignado no Código Penal? “É sim, mas um momento que vou falar com a senhora Procuradora”, respondeu, levantando-se. Quando regressou, retorquiu que poderia fazer o protesto, mas que lhe parecia que, inevitavelmente, iria ser arquivada. Depois de formalizada a participação, informei-a da minha indignação e de que iria dar conhecimento público a um jornal da cidade. Simpaticamente, louve-se, remeteu-me para o Palácio da Justiça e aconselhou-me a falar com uma funcionária encarregue da tramitação processual referente à Lei da Saúde Mental.
Chegado aqui, havia duas funcionárias. Chamando a si o assunto, uma delas, inicialmente simpática, começou por me dizer que nada podia ser feito. A lei era bem clara: só com a anuência do doente. Bem lhe tentei explicar que estavámos perante um presumível interdito, um deficiente mental que não era responsável pelos seus actos. Pois, compreendia, mas perante a lei nada se poderia fazer. Conhecia eu a mãe? E a Assistente Social? A contra gosto, repliquei que não conhecia nenhuma delas, mas isso não me competia a mim, eu queria salvar o dedo ao rapaz, porque tinha um carinho especial por ele. Então porque não ia eu com ele ao Delegado de Saúde…uma vez que se tratava de uma questão de saúde pública?! Mais uma vez repliquei que não era assunto da minha competência. “Ai não?! Mas o senhor está a deixar-se levar pelo coração. A lei era bem clara”. Já a faltar-me a paciência, retorqui que era uma questão de humanidade e que, contrariamente ao que pensava, era a minha razão que me impelia, embora também com a emoção. Abordei que estávamos perante um absurdo jurídico e, que não se sentisse pressionada, mas iria dar conhecimento público ao Diário de Coimbra. Quando a senhora funcionária ouviu falar em jornal, levantou-se espavorida e disse: “O senhor está a pressionar-me…vou chamar a senhora Procuradora”. Entretanto a colega ainda teve tempo de exclamar: “se gosta tanto dele porque não se queixou mais cedo?”
Veio a Senhora Procuradora; expliquei-lhe o que se passava que estávamos perante um presumível interdito, um deficiente mental. “um deficiente mental? Como pode o senhor afirmar isso?”-questiona a procuradora. Repliquei que não era psiquiatra mas que, na baixinha, todos conhecíamos a sua incapacidade psíquica. Em jeito de queixa, lamentei que estivéssemos perante um aborto jurídico, em que, esta lei, poderia ser inconstitucional, uma vez que obrigava um deficiente mental a responder de igual modo como um congénere pleno das suas faculdades mentais. Objectei que parecíamos estar, retroactivamente, em pleno século XIX, no positivismo jurídico, em que, na obsessão da igualdade, as diferenças eram despiciendas e não eram levadas em conta. A senhora Procuradora, nas entrelinhas verbais, deixou escapar que realmente era um absurdo. Seguidamente, questionou a funcionária se não haveria já um processo de interdição do Luís Miguel – restantes apelidos que eu não soubera responder por desconhecimento. A funcionária procurou e havia efectivamente, desde 2005, desencadeado por desacatos nas Galerias Avenida .
Conclusão: constatei ao longo desta odisseia que a começar na 2ªEsquadra e acabando na funcionária do Tribunal, que o direito é uma mera aplicação, como se tratasse duma equação simples, uma régua (ou régula matemática) que é aplicada por tecnocratas, no sentido em que são pessoas de formação essencialmente técnica. Ora o mundo do direito é muito mais do que isso. O direito não é estático é dinâmico e vai muito para além dos códigos -qualquer advogado ou magistrado sabe do que falo. O legislador não pode prever tudo e é por isso que quem trabalha com jurisprudência tem de ter uma sensibilidade de artista. Ora é evidente que não se pode exigir a um funcionário, por muito bom que seja, essa faculdade de sentir, essa percepção, então levanta-se uma questão crucial: porque razão não é esta recepção de queixas, a começar nas esquadras, feita por licenciados em direito?
Para terminar, interroga-se: já foi pedida a fiscalização sucessiva por inconstitucionalidade desta Lei de Saúde Mental? Parece-me, salvo melhor opinião, que o legislador, na obsessão da defesa dos direitos dos deficientes mentais, acaba, nesta lei, por subverter o princípio da igualdade e, paradoxalmente, acaba por descriminá-los.
Uma coisa é certa: eu senti-me um D.Quixote a lutar contra o vento e tive a perfeita noção de que a “inalienável dignidade humana” é um preceito aplicável a quem o puder reivindicar, quem não puder será considerado como lixo e assim vagueará por entre nós. Para nossa vergonha.


P.S.-Esta história verídica foi publicada,
Em reportagem, no Diário de Coimbra,
Em 18 de Abril de 2007. Apesar desta
Notícia, o Luís Miguel só foi levado para
Os HUC passados 9 dias. Hoje, sem
“ percings” e sem anéis, continua a ser
visita assídua de todas as lojas da Baixa.
Continua a solicitar:”dá-me xinquenta…
tu és tio-avô". Apontando para um dedo,
presumivelmente, intervencionado cirur-
gicamente, diz: anés…nô mais…nô mais…

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